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JUSTINE: DO DESEJO À PERVERSÃO DO DISCURSO

Patrícia Barreto de Souza
Patrícia Morais Rosendo Dourado[1]

Robério Pereira Barreto[2]

“Entendamos de uma vez por todas; nada seria mais inútil do que tomar Sade ao pé da letra, seriamente. Por qualquer aspecto que seja abordado, sempre fugirá de nós.”

Georges Bataille

Resumo: Entre “risos e enrubescimentos” ousam de vez em quando falar de sexualidade. A análise do presente artigo propõe perceber os discursos, a perversão da ordem, o afrontamento do bem e do mal, vício e virtude em Marquês de Sade, que acreditava que estes princípios mesmo sendo contrários, são necessários para manutenção do equilíbrio social.  Através das personagens Justine e Julieta, que representam a resistência da moralidade e a entrega à amoralidade respectivamente. Essa perspectiva de interpretação fundamenta-se na Análise do Discurso Francesa – ADF, e nas bases filosóficas sobre sexualidade, vício e virtude, para se perceber as nuances possíveis.

Palavras–chave: Sade; Desejo; Perversão; Discurso e Poder

1)                                         Introdução
Justine ou Os Infortúnios da Virtude, romance do Marquês de Sade, escrito em 1787, publicado pela primeira vez em 1791. Um livro considerado proibido, uma das primeiras literaturas malditas da modernidade, vendido “debaixo do balcão”, as bibliotecas públicas os guardam no chamado “inferno” dos livros malditos segundo Carpeaux[3]. Alguns a consideram, obscena, estranha e inimaginável.
Neste artigo será explorado desde o Desejo à perversão dos discursos presente na obra sadeana Justine ou Os infortúnios da virtude. Pretende-se perceber as interdições e transgressões desse autor que abalou o século XVII, e até hoje abala a acomodação literário-discursiva.
Sade causa rupturas não somente no campo da sexualidade como é habitualmente lembrado, mas também na perversão de toda uma ordem discursiva, que segundo Foucault, é regida por procedimentos internos e externos de controle[4]. O que Sade faz em sua obra e também em Justine (objeto dessa análise) é utilizar-se do “discurso que é ao mesmo tempo um instrumento e um efeito de poder” [5] para afrontar o poder institucionalizado da Igreja e do Estado.
O Marquês de Sade confronta as idéias de virtude e vício, através das personagens Justine e Julieta[6], duas irmãs, filhas de um mercador, que foram instruídas em um dos melhores conventos de Paris. Porém, após uma decadência financeira o pai das jovens, no desespero, fugiu para Inglaterra deixando-as com sua mulher, que faleceu oito dias depois de sua fuga. Os parentes ao descobrirem a falência, abandonaram-nas, e o convento deu-lhes um ultimato de vinte e quatro horas para saírem. As irmãs seguem caminhos distintos:

“Desde que suas intenções eram tão diferentes, sem nenhuma promessa de voltarem a se ver, as duas irmãs se separaram. Julieta que ia, como pensava, tornar-se uma grande dama, consentiria em tornar uma menina cujas inclinações virtuosas e inferiores iriam desonrá-la, e desejaria Justine, por sua vez, pautar seus costumes na sociedade perversa que se tornaria vitimada crapulice e do deboche público? Cada qual pois procurou recursos e abandonou o convento no dia seguinte ao combinado.”[7]

Justine, então, é personificadora da virtude ou dos princípios cristãos, tais como benevolência, castidade, solidariedade e justiça, mas ainda assim acaba sempre envolvida, inocentemente, em delitos, homicídios e depravações conduzida por sua “má estrela”. Contudo, Julieta, sua irmã três anos mais velha, arriscou-se pelos caminhos do vício e do prazer, entregando-se aos “instintos”, ao crime, à devassidão e aos desejos escandalosos.

2)                                         Sade: literatura de desejo
“Sade é um autor ‘erótico’, estão sempre a nos dizer”. Barthes em comentário à obra sadeana.[8] O termo erótico vem do gr. erotikós, pelo lat. tard. eroticu. Que remete a Eros, deus grego do amor. No sentido em que se aplica nesta análise, o termo tem por significância a ideia que provém de Sigmund Freud, que usou o termo Eros para definir libido ou o impulso vital como um dos instintos primários principais que regulam o comportamento humano, ao lado da morte. A força psíquica de Eros é citada como pulsão. O impulso de vida é de conservar-se para a sobrevivência e reprodução. Eros abrange tudo que proporciona o prazer. Nesta concepção freudiana o termo se opõe a Tânatos [Do mit. gr. Thánatos, lit., ‘morte’.] que seria o deus da morte, filho da Noite e de Hipnos, que na psicanálise designa a pulsão de morte, de destruição. Julieta entrega-se aos prazeres de Eros, Justine preocupa-se com Thánatos, a castidade é a escolha pela preservação do corpo, sob a ótica de que todo gozo sexual é um princípio de morte, visto que há uma perda da energia vital.[9]
Em Justine ou Os infortúnios da virtude há dualidade representada de Eros e Thánatos, quando Justine prefere a virtude como diretriz à sua vida, enquanto Julieta opta por viver o Eros em toda sua completude. E vê através dessa vivacidade e do uso de seu corpo a possibilidade da ascensão social. Visto em:

[...] “Julieta, encantada por ser dona de si mesma, tentou por um momento comover Justine mas, vendo que nisto não teria êxito, pôs-se a repreendê-la ao invés de consolar. Disse-lhe que era uma bêsta e que, com a idade e o aspecto que tinham, não havia exemplo de jovem alguma que tivesse morrido de fome. Citou-lhe o caso da filha de um de seus vizinhos, a qual, tendo fugido da casa paterna, era agora mantida ricamente por um grande proprietário  e vivia faustosamente em Paris. Justine tinha horror a êste exemplo pernicioso, e dizia preferir morrer a segui-lo; e decididamente recusaria morar com sua irmã logo que a visse disposta a um gênero de vida tão abominável como sôbre o que Julieta lhe fazia o elogio.”[10]

Mas o que é o erotismo em Sade? Sempre falam de Sade como um escritor erótico ou até mesmo pornográfico, Barthes acredita que na sociedade o erotismo não passa de um vocábulo, já que as práticas só podem ser codificadas se forem conhecidas, isto é, faladas; mas a sociedade nunca enuncia qualquer prática erótica, “apenas desejos, preâmbulos, contextos, sugestões, sublimações ambíguas,” de maneira que o termo erotismo pode ser determinado apenas como uma eterna alusão. Sob essa ótica, a literatura sadeana não é erótica, como fora dito antes, não existe em Justine, um strip-tease de nenhuma natureza, esta alegoria fundamental do erotismo moderno.
Esta análise se ocupará de alguns elementos que marcam a face erótica na obra Justine. Tais elementos são o que diferencia o que Barthes chama de “Erótica Sadiana Criminosa da nossa inofensiva, enquanto a primeira assertiva, combinatória, ao passo de que a segunda é sugestiva, metafórica.” [11]
As personagens do livro analisado são diferentes, mas possuem traços em comum, elas divergem na conduta, mas converge-se em alguns pontos. O primeiro ponto onde se assemelham é a descrição da beleza física. A descrição da beleza tem importância fundamental, visto que Sade a pinta, para depois sujá-la. Julieta era “[...] Morena, mui viva, um belo porte, olhos negros de rara expressão, de espírito, e, sobretudo de uma incredulidade que, dando um sabor diferente às paixões, faz com que se busque com maior cuidado a mulher que nela suspeitamos” [12]. Já Justine, Sade descreve:
“Quanto mais se considerava o artifício, a astúcia, o coquetismo nos traços de uma, tanto mais se admirava o pudor, a delicadeza e a timidez na outra. Um ar de virgem, de grandes olhos azuis cheios de encanto, uma pele deslumbrante, um porte delgado, um timbre de voz suave, dentes de marfim e belos cabelos louros, eis o esbôço desta jovem encantadora, cujas graças ingênuas e traços delicados são de um tom de tal maneira fino e delicado que não poderiam escapar um pincel que desejasse executá-la.” [13]

Note que a descrição feita de Justine é pormenorizada, a imagem literária que forma na mente de quem lê, é a imagem de um anjo, a imagem da delicadeza. Tanto a imagem de Justine como a de Julieta, são traçadas, para depois serem profanadas. Julieta é a que aos quase trinta anos, tem bela aparência, conserva o belo porte, e é rica. Antes da descrição física da personagem, Sade chama Julieta de sacerdotisa de Vênus, uma alusão a mitologia latina em que, Venus, é considerada a “deusa da formosura, do amor e dos prazeres Enquanto Justine aos vinte e sete tem a marca dos criminosos, e tem o aspecto sofrido, embora possa notar vestígios de sua beleza. Para Bataille (2004, p.226), “a beleza cuja perfeição rejeita a animalidade, é apaixonadamente desejada, é que nela a possessão introduz a sujeira animal. Ela é desejada para ser sujada. Não por ela mesma, mas pela alegria experimentada na certeza de profaná-la.” As personagens em questão são belas, como todas as heroínas de Sade, pois a beleza ainda segundo Bataille (2004, p.229) é interessante em seu mais elevado nível no que se refere ao “fato de a feiúra não poder ser sujada, e que a essência do erotismo é a sujeira.”
Os livros ditos eróticos concebem aquém da cena erótica, sua expectativa e idealização é que são de fato excitantes; quando a cena chega, o ápice, o que ocorre é um desapontamento. Noutras palavras são livros do Desejo, não de Prazer. Sade se adéqua perfeitamente nestes escritos, o que existe neles são mais expectativas do que consumação delas. “Um mesmo sentido diz aqui e lá que tudo isso é muito ilusório.” (Barthes, 2008, p.68)  
Há um fetiche nos textos sadeanos que está ao nível imaginário, o prazer não existe em Sade, este pode ser exemplificado com a colocação de Barthes acerca do expectador apressado que sobe ao palco do espetáculo de cabaré, tentando acelerar “o strip-tease da bailarina, tirando-lhe rapidamente as roupas, mas dentro da ordem[14], isto é: respeitando, de um lado, e precipitando, de outro, os episódios do rito ”[15]. Mas no livro de Desejo, nunca será vista a nudez.  Sade não explicita, nem descreve minuciosamente as cenas de sexo, apenas cria o desejo, sugere os meios e as reações das personagens e suas preferências:

“— Vinde, meu amigo, vinde — disse um dêles — aqui estaremos às mil maravilhas: a cruel e fatal presença de minha mãe pelo menos não me impedirá de contigo saborear, por momentos, os prazeres que me são tão caros.
 Aproximaram-se e se colocaram de tal modo diante de mim que nenhum de seus propósitos... nenhum dos seus movimentos pôde me escapar, e eu vi...”[16]

No trecho citado acima, Justine após escapar das mãos do bando criminoso, encontra o Sr. Bressac e um criado em um encontro homossexual. Sade apenas sugere essa possibilidade do ato sexual, as reticências usadas promovem um vácuo a ser preenchido pelo imaginário do leitor. Posto que “o verdadeiro lugar da escrita, é a leitura.” [17] O leitor se revela o “ser total da escrita”, um texto é composto de escritas múltiplas. Em Justine, assim também como outras obras sadeanas, dão ao leitor esse lugar de ser total da escrita, o que o caracteriza no âmbito do desejo e não do prazer, sendo considerado erótico por apenas mostrar a fenda da linguagem, mas não o que há no cerne dela. Se assim o fosse, teríamos então, uma literatura pornográfica, que não cria o desejo, mas o consuma mostrando-se.

3)                 As faces da mulher em Sade
A moeda sexual é o “jogo duplo” das representações de Sade, é nessa oposição que a  sexualidade da mulher sob o ponto de vista do Marquês, “tilinta” diante do leitor, são elas: Justine e Julieta, a castidade e a boa moral de uma, em oposição à escolha pela prostituição e o crime da outra.
a.                  Julieta
Julieta ao adentrar na prostituição atua como um sujeito desejante, que se oferece como objeto que quer ser e estar no “corpo” social. Em outras palavras, ela oferta seu corpo como ingresso ao corpo da alta sociedade.
“Ao sair do convento, Julieta foi à procura de uma mulher, de quem ouvira falar por uma amiga que se pervertera, e de quem quardara o enderêço. Ali chegou impudentemente com suas posses sob o braço, um vestido em desalinho, a mais graciosa figura do mundo, e um ar de escolar. Conta sua história à mulher, suplicando que a proteja como fizera, alguns anos antes, à sua antiga amiga.”[18]

O trecho acima citado mostra que bem antes da saída do convento, Julieta já estava inclinada à prática “libidinosa”, note o uso da palavra “impudentemente” que sugere que Julieta já não tinha pudor algum, e que já estava disposto a fazer uso de seu corpo como instrumento de inserção no corpo da sociedade daquela época.
“Terminado o sermão, a novata foi apresentada às suas companheiras, e em seguida foi-lhe indicado seu quarto e no dia seguinte suas primícias foram vendidas. Em apenas quatro meses a mesma mercadoria foi, sucessivamente vendida a oitenta pessoas, e todos a pagaram como se ela ainda fôsse virgem, e sòmente ao término dêste espinhoso noviciado é que Julieta recebeu a patente de irmã conversa. A partir daí foi realmente reconhecida como filha da casa e passou a partilhar das fadigas, das libidinagens... além do noviciado. Se no início algumas vêzes Julieta tinha rebaixado à natureza, depois esqueceu completamente as leis naturais: buscas criminosas, prazeres vergonhosos, devassidão, e vícios ocultos, gostos escandalosos e estranhos, fantasias humilhantes, tudo isto, por um lado, fruto do desejo de fruir sem arriscar a saúde, e, por outro, uma saciedade perniciosa que ao ferir a imaginação só a deixa expandir-se por excessos e saciar-se de depravações...”[19]

A citação anterior evidencia a iniciação à prostituição, é interessante perceber que a virgindade de Julieta foi vendida a “oitenta pessoas”, não a oitenta homens, há, portanto, a abertura para o entendimento que havia a prática do lesbianismo, Sade ao sugerir práticas que segundo ele mesmo “esqueceu completamente as leis naturais”, afirma-se totalmente contra a concepção de sexo reprodutivo como era posto pela Igreja.
No uso da frase: “fantasias humilhantes, tudo isto, por um lado, fruto do desejo de fruir sem arriscar a saúde, e, por outro, uma saciedade perniciosa que ao ferir a imaginação só a deixa expandir-se por excessos e saciar-se de depravações...” Aponta para um dos princípios do sadismo que é a negação do outro. A fantasia e o fetiche são elementos base para a compreensão do erotismo, uma atua no nível da individualidade e a outra no pessoal. Ao se submeter às fantasias, a personagem em questão nega seu eu, o que segundo GIDDENS, (1993, p.98) o fato da mulher submeter-se há uma simbologia de ser “morta” é a negação de si no espaço sexual, o que implica o “ato de matar” do sedutor, que para o teórico,  tem por função a destruição da virtude.
A docilidade com que Julieta se entrega e a negação de seu eu, pode ser comparada a “O Homem- máquina” de La Mettrie, que na visão do pós-estruturalista Foucault (2009, p.132) é ao mesmo tempo um arrefecimento da alma e uma teoria geral do adestramento, no meio dos quais reina a noção de “docilidade” que liga ao            “corpo analisável o corpo manipulável”. É dócil um corpo que pode ser dominado, que pode ser utilizado, que pode ser modificado e aprimorado, na iniciação de Julieta há todos esses processos. Há o domínio da Sra. Boisson, que “a abrigou”, a utilização deste corpo, para condicioná-lo da melhor maneira possível para o meretrício. Bataille (2004, p.209), fala que na prostituição havia a consagração da prostituta à transgressão, nela o aspecto proibido da atividade sexual aparecia ininterruptamente; A vida de Julieta é dedicada à infração da interdição da sexualidade.
Sade coloca que a natureza é criminosa, e ser benévolo na sociedade é ir de encontro a essa natureza. Sempre opõe a virtude ao vício, o primeiro sendo posto fraco e o segundo forte. No livro analisado há uma representação da sociedade, mas trata-se de uma representação nua e constrangedora, talvez seja este o motivo de Sade ter sido “incompreendido” na sua época e na atualidade. A impunidade é sua marca, ele a coloca como gloriosa, depois de matar seu primeiro marido que conheceu na casa da Sra. Boisson, Julieta, agora Sra. de Lorsange retoma seus velhos costumes, “e por acreditar que era alguma coisa no mundo passou a ter um pouco mais de compostura. Não era uma jovem fácil, mas uma rica viúva que dava belos suspiros, e em cuja casa a cidade e a côrte se honravam por serem admitidas”[20]. Mais a frente há inúmeros relatos de que Julieta comete vários crimes, dentre eles, abortos, para não perder a beleza.
Toda criminalidade é seguida pela prosperidade e a virtude perseguida pela infelicidade (cf.p.26). Isso é visível no drama da personagem Justine.

b.                 Justine
Justine é a personagem que Sade toma para “atormentar”. A virtude segundo ele existe para ser atormentada pelo vício. A história de Justine é marcada por acusações de crimes não cometidos. Sempre se negando ao vício, ela se vê em situações contraditórias ao que normalmente seria o resultado de sua boa conduta. Até ao ajudar, arranja para si situações perigosas, que a colocam diante dos outros como uma criminosa. Escolhe como caminho a castidade, a honestidade e benevolência. A castidade é um princípio que em Sade é altamente questionado, ele em outros escritos considera injusto as jovens manterem-se virgens por causa de uma imposição egoísta da família. Há, de fato, uma relação de subordinação do virtuoso ao sádico. A jovem personagem é frequentemente penitenciada por ser correta, e em incontáveis vezes é violentada, submetida a indignidades sexuais, marcada a ferro como ladra e flagelada quase até a morte.
Sade era leitor assíduo de Rousseau, tornou-se um de seus maiores críticos, combatendo o idealismo sentimental expresso não só nos romances de Rousseau, mas em quase todos os romances escritos em sua época. Usando a mistura de gêneros num mesmo romance, comum aos escritores do século XVIII, Sade trata os mesmos temas sob outra ordem. Para isso, faz uso da paródia. Os diálogos das vozes extraídas de discursos e contextos distintos se cruzam na narrativa abordada. No caso de Sade, o “discurso do outro”, ou seja, o objeto lingüístico parodiado, é a fala das heroínas tradicionais dos romances de ideologia sentimental, representado nele pela linguagem das vítimas. Todo texto, na verdade:
“é absorção e transformação de outro texto”, ou seja: como qualquer romance polifônico, o texto está sempre fazendo uma leitura de um “corpo literário” anterior na medida em que o absorve. Segundo Kristeva (1974 apud Borges, 2003, p. 210), “há a inserção da história no texto, e do texto na história”.

O idealismo sentimental pode ser detectado em boa parte da literatura e das artes daquele período, seus valores contínuos são: virtude, sensibilidade e moralidade, bem distante de Sade nos seus escritos. A valorização destes dogmas é própria do século das Luzes, o que segundo Nascimento (2008)[21] tem-se nos romances da época representações desse modelo: as heroínas romanescas, por exemplo, são virtuosas, sentimentais, como a Justine de Sade e a Julie de Rousseau. Ao parodiar o discurso sentimental, sobretudo as vozes de suas heroínas virtuosas cujo modelo exemplar é a Julie de Rousseau[22], Sade [23] segundo Borges (2003, p.211) trava uma batalha textual contra a torrente triunfante do sentimento e da sensibilidade. No entanto, nos textos de Sade, há também exemplos da retórica sentimental nas falas de algumas de suas heroínas virtuosas.
Sensibilidade e virtude eram valores cultivados e apreciados também por artistas e filósofos (...). Mesmo Sade parece comungar desses valores em algumas de suas obras, sobretudo na primeira versão de “Justine, ou os infortúnios da Virtude”, e em alguns de seus “Crimes do Amor”. Mas a necessidade imperiosa de afrontar tais valores e destruir-lhes o significado é a tônica de sua literatura.[24]

Isso é perceptível quando depois de falar que a prosperidade pode acompanhar o crime, ele desfaz seu discurso dizendo que “Esta prosperidade do crime é apenas aparente.”[25] Há uma polifonia, dentro de Justine ou Os infortúnios da virtude, é possível perceber que um mesmo enunciador tem várias vozes. Vozes essas, que ao mesmo tempo fazem apologia a natureza criminosa, depois “defende” a virtude, mesmo que em ironia.
4)                 A negação
Conforme Borges (2003), a crueldade sadiana é apenas uma tática de negativa do mundo, uma forma de demonstrar seus sofismas e quão longe se encontra da idealização de felicidade humana.
“A palavra libertina é a lei. “A natureza fala de nós mesmos”. No entanto, só o libertino pode se reconhecer nesse “nós”, só ele pertence à casta privilegiada dos que entendem a “linguagem da volúpia”. É esse ato de reconhecimento que divide o mundo sadiano em duas categorias, os libertinos e as vítimas. Os primeiros são dotados de uma “organização especial” pela natureza e favorecidos por sua condição na sociedade quer como ricos e/ou poderosos. Geralmente os libertinos são os senhores dos castelos ou os bispos das Igrejas onde confinam suas vítimas. Os segundos, as vítimas, são seres virtuosos e sensíveis. Estes naturalmente jamais poderão ouvir a natureza, por estarem imersos em ilusões e preconceitos impostos pela moral e pela religião. Não podem praticar libertinagem violenta porque sua relação com o outro é mediada por sentimentos como a piedade e o amor ao próximo.”[26]
A negação é um dos princípios da erótica sadeana. No romance analisado há vários exemplos que justificam essa negação do outro. As práticas sexuais sugeridas são sempre de submissão e negação, as orgias descritas exemplificam o que Bataille (2004) diz a respeito das orgias, que são decepcionantes, pois são em princípio, negação acabada do aspecto individual.  Não somente a própria individualidade[27] fica submersa no tumulto da orgia, mas cada participante nega a individualidade dos outros (pp.201-2). Veja no trecho abaixo:
“[...] A porta se abriu, e vi em redor de uma mesa três monges e três moças, todos seis na situação mais indecente que possa imaginar. Duas destas jovens estavam completamente nuas, a terceira estava se despindo ainda, e os monges estavam quase nus...” [28]
A negação total de Justine dá-se no desfloramento de sua virgindade. Nas palavras da mesma;
“O infeliz me colocou num sofá na posição própria à prática do ato execrável mandando que Antonino e Clemente me segurassem... Rafael, italiano, monge e depravado, não vacilou em gozar o prazer de um modo ultrajoso, deixando-me ainda virgem. Oh! Que completo desvario! Pois êstes homens abomináveis se vangloriavam de esquecer a natureza na escolha de seus prazeres indignos. Clemente avançou para mim, excitado pelo espetáculo que seu superior lhe oferecera, e mais ainda que observara. Declarou-me não ser menos perigoso do que seu guardião, e que no lugar onde ia prestar sua homenagem deixaria minha virtude sem perigo [...]
—Eis aí as felizes preparações — disse Antonino agarrando-me. —Vem franguinha, vem que eu vou te vingar da irregularidade de meus confrades, e colhêr as primícias antes que me abandone a intemperança...” [29]

Ao descrever a implicação da moral sadeana Maurice Blanchot (apud Bataille, 2004, p.297) fala que a negação dos outros é depois uma negação de si mesmo. Os monges e todos os outros que abusaram de Justine, não somente a nega, mas negam a si próprios.

5)                                         Perversão da Ordem dos discursos
Foucault (1970) elucida a existência duma relação de veneração e temor do discurso, que ao longo da história sempre houve o uso de procedimentos internos e externos para o controle da produção e distribuição dos mesmos. Dentre eles estão postos a interdição, a segregação e as vontades de poder, os quais determinam que certas palavras sejam proibidas, ou seja, que não se pode dizer tudo, em qualquer circunstância. Para o filósofo francês “Sexualidade e política são lugares onde tornam - se mais notáveis tais interdições”.       A transgressão dessa ordem é uma característica presente nos escritos sadeanos, considerado por muitos como uma literatura desmedida que excede o desejável, ultrapassando os limites estabelecidos pela moral e infringindo todos os códigos de conduta, justamente pelo rompimento das interdições sociais. Esse processo seria a relação da oposição da razão e da loucura, que para Foucault (1970) é um princípio de exclusão e rejeição do discurso, já que há uma tentativa imanente de manipulação dessa ordem. Para Foucault (1970) o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros:
“[...] pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância [...] pode ocorrer também em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. Ou caia no nada – rejeitada tão logo proferida [...]” [30]

Essas afirmações esclarecem que a palavra é vista como forma de poder, no qual predomina uma soberania que supostamente é detentora da razão e da verdade absoluta. Isso certamente remete a compreensão dos motivos pelos quais o Marquês de Sade era julgado como um louco e os seus escritos considerados absurdos, consequentemente suas obras proibidas de circularem.
 A audácia de Sade em “proferir uma verdade escondida” era uma ameaça à ordem do discurso vigente. Tais posicionamentos desordenados não convinham para as relações de poder existentes na época, sendo assim, era conveniente que seu discurso fosse considerado nulo, insano, sem importância, ocultado pela prevalência da razão.
Em Justine, a ironia sadeana sugere uma inversão da representação do discurso de caridade e abstinência sexual religiosa. É sugerida no texto a tentativa do sacerdote de corromper a moral da jovem Justine, isto é evidenciado no trecho que segue:

“Vendo isto Justine foi procurar o padre da sua paróquia e lhe pediu alguns conselhos. Mas o piedoso sacerdote lhe respondeu de modo equívoco que a paróquia estava sobrecarregada, que impossível era fazê-la participar das esmolas. Mas, se quisesse servi-lo, alojá-la-ia de bom grado em casa, com êle. E ao dizer isto o santo homem lhe passou a mão sob o queixo dando-lhe um beijo muitíssimo mundano para um homem da Igreja. Justine, que tudo compreendeu, retirou-se apressadamente [...]” [31]

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Mas não é somente no âmbito de escandalizar e debochar da Instituição (Igreja), que ele estabelece uma ruptura, mas é ao afrontar toda uma forma de governo e de sociedade escondida em “tabus”, e ao “tirar toda a sujeira debaixo do tapete” que ele rompe. Este rompimento é dado por seu discurso, pelo uso da língua oficial, para criticar as instituições vigentes na época. Estado e Igreja, são ridicularizados, embora reconhecidos, enquanto lugares de produção de poder.
O poder institucional estabelecido no romance contrapõe-se entre a concepção de discurso verdadeiro e falso. Essa vontade de verdade exercida pelo Estado e pela Igreja, onde o poder era centralizado, fazia-se uso da coerção para controlar o discurso, que Foucault trata como um dos sistemas de exclusão:

“[...] O discurso verdadeiro – no sentido forte e valorizado do termo -, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme ritual requerido; era o discurso que pronunciava a justiça e atribuía a cada qual sua parte; era o discurso que profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino [...]”[32]
É importante notar que essa forma de delimitação instalada no discurso preestabelece a monopolização do saber, onde o aparelho do Estado, enquanto soberania exerce o poder, deixando evidente que é a força centralizadora desse poder, sustentada sobre o suporte institucional determinando os procedimentos de controle do discurso.
Partindo desses pressupostos, percebe-se que se trata da imposição de regras para controlar a produção e introduzir ordem ao discurso, visto que, essas regras restringem a inserção do sujeito no discurso, não permitindo dessa forma que todos os indivíduos tenham acesso a ele. Foucault argumenta que a rarefação desta vez é dos sujeitos que falam:

[...] Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala. (FOUCAULT, 1970, p.37)

O Marquês de Sade sempre foi acusado por libertinagem excessiva em sua obra, considerada capaz de destruir o corpo e a alma de qualquer leitor. A tentativa de rompimento das estruturas tradicionais realizada por Sade através do seu discurso considerado leviano e das suas obras maliciosas o levou a ficar um grande período da sua vida recluso em asilos e prisões. Essa estratégia de poder do Estado e da Igreja aponta a rarefação do sujeito que fala, ou seja, o apagamento do sujeito.
 Uma marca relevante da literatura sadeana é a sua relação com o poder institucionalizado, ele sempre trata Estado e Igreja com ironia. Essa ironia se estabelece quando um discurso proferido quer dizer o contrário, que de acordo com Maingueneau (1997; p.98) a ironia subverte o limite entre o que é assumido e o que não o é pelo locutor. Enquanto a negação pura e simplesmente renuncia a um enunciado, utilizando um operador explícito, a ironia possui uma propriedade de poder rejeitar, sem passar por um operador dessa natureza. O locutor se coloca em cena determinado enunciador que toma uma postura absurda e cuja alocução não pode assumir. Maingueneau alerta acerca da transcrição da ironia, já que não é possível recorrer à entonação, a gestos e situações, mas o efeito da ironia é justamente suscitar a ambigüidade.
Na obra apreciada, há a aparição deste recurso como em um questionamento de um dos monges; “Por acaso é natural ser virgem na tua idade (22 anos[33])? / —Não é pois um milagre tua virgindade ter durado tanto tempo...?”(p.84). Também quando remetem a Lucrécia Borgia; “— Meus amigos – disse Rafael entrando- faltava uma, ei-la aqui. Permiti que vos apresente uma coisa extraordinária; Eis uma Lucrécia que traz nas costas a marca das mulheres de má vida ...”(p.83). Lucrécia Borgia, era filha ilegítima do Papa Alexandre VI[34], no século XV, que se casou com o príncipe austríaco Giovanni Sforza aos treze anos, há dúvidas de sua virgindade antes do casamento, e sua vida foi marcada por escandalos que vão desde incesto à orgias com seus irmãos e esposas e até com o pai. Ao aludirem a ela, o monge Rafael, coloca em dúvida a virgindade de Justine, que era uma raridade na conceituação dele. Essa alusão é mais evidente por ambas, Lucrécia e Justine serem loiras.

6)                 Virtude versus vício ou Justiça e Injustiça
Nos escritos sadeanos o conjunto dos preceitos morais vigentes são irrelevantes, Sade coloca-se em posição contrária recusando toda a virtude e crenças religiosas. Adepto das predisposições naturais, em que a natureza determina as intenções, e o bem e o mal são espontaneamente apáticos, Sade era causídico das práticas sexuais tidas na anormalidade, considerando que o equilíbrio natural dependia do vício e da injustiça tanto quanto da virtude e da justiça. O Marquês sem nenhuma prudência violou a ordem das leis, colidiu com a sociedade francesa revolucionando a literatura:
“Se, partindo de nossas convenções sociais e jamais nos separando do respeito que elas que nos inculcaram através da educação, chegar infelizmente a acontecer que, pela perversidade dos outros, não tenhamos encontrado senão espinhos, enquanto os maus colhem apenas rosas [...] E não dirão que a virtude – por mais bela que seja, ocasião em que infelizmente ela se torna mais fraca para lutar contra o vício – venha a ser o pior partido que se possa tomar e que, no caso de um século inteiramente corrompido, o mais seguro é fazer como os outros? [...] e que é essencial para a manutenção do equilíbrio que haja tantos bons quanto maus [...] E também não argumentarão que, se a infelicidade persegue a virtude; e que, se a prosperidade quase sempre acompanha o vício, sendo ambos coisa igual ante a natureza – que vale mais: tomar partido dos maus, que prosperam, ou dos virtuosos, que perecem?” [35]

O livro aborda e dá ênfase ao vício e a injustiça como formas de poder e ascensão, como já antes mencionado. A narrativa transita entre o poder, o excesso, a perdição, o explícito e o vício representado pela figura de Julieta;
“[...] Da condição simples de onde a vimos sair, ela se tornou aos quinze anos numa mulher possuidora de título nobiliárquico, com uma renda superior a mil libras, portadora de jóias caríssimas, duas ou três casas no campo e em Paris, e que, ao mesmo tempo, trazia consigo o coração, a riqueza e a confiança do Senhor de Corville, conselheiro de Estado, homem de grande credito e às vésperas de entrar para o Ministério [...]”[36]
A submissão, o essencial, a salvação, o contido e a virtude problematizados em Justine:  
[...] Justine, sua irmã, ao atingir os doze anos, era possuidora de um caráter sombrio e melancólico, dotada de ternura e sensibilidade surpreendentes, tendo no coração, em vez de arte e da sutileza, uma ingenuidade, uma candura, uma boa fé que a levaria a cair em muitos ardis e faria com que ela sentisse todo o horror de sua posição [...] Quanto mais se considerava o artifício, a astúcia, o coquetismo nos traços de uma, tanto mais se admirava o pudor, a delicadeza e a timidez na outra. [...] [37]

Essas cenas do romance confirmam a posição de Sade perante as regras de conduta social e moral, enfocando sempre que o vício é transcendente a virtude. A irmã libertina, que não é possuidora de virtudes e usa dos mais perversos artifícios para alcançar o status social, é sempre beneficiada com suas ações malevolentes atingindo sempre seus objetivos. No entanto, a irmã virtuosa, cheia de pudor e bondade está sempre recebendo punições pelo seu comportamento ingênuo.
É importante ressaltar que apesar dos sofrimentos e das constantes injustiças pelo o qual Justine passou, e ter tido várias oportunidades de se desviar pelos caminhos do vício, ela não se distancia de seus fundamentos religiosos, revelando-se cada vez mais leal aos princípios aos quais foi alicerçada. Nota-se que Sade insiste em conduzir os princípios da personagem com a mesma intensidade do início ao fim da narrativa, deixando transparecer em alguns momentos que ele também compartilha desses valores, tornando o seu discurso polifônico, pois ao mesmo tempo em que contrapõe a moral vigente ele a insere e a valoriza.

7)                                         Considerações
Sade com uma linguagem que desestabiliza a estrutura da “moralidade” da sociedade ocidental, que “entre risos e rubores” ousam de vez em quando falar de sexualidade, e não somente de sexo reprodutivo. Até o lugar e como falam de sexualidade na atualidade, determina o “vazio” do termo erotismo, como antes já dito, “a eterna alusão”[38]
A língua(gem) como ferramenta de poder, nas mãos deste “louco”, como definiram e ainda definem Sade, toma proporções nunca dantes pensadas, polemizadas. Com a “pena” na mão, o scriptor, como se pode definir Sade, não é um sujeito anterior ou posterior a obra, visto que, seu discurso é atual para os mais variados contextos, e cada leitura reposiciona a discussão ou não da sexualidade, âmbito em que todos que leem sentem-se atingidos diante deste scriptor atemporal.
A ideia de uma sociedade baseada na moral é utópica, e é “posta de lado”, quando Sade defende a pulsão humana criminosa enquanto vantagem. Há rupturas dos textos filosófico, religioso e estatal que dão-se na estrutura de críticas diretas e indiretas em Justine ou Os infortúnios da virtude. Quem ousaria tanto? Quem se oporia tão claramente a estrutura e distribuição de poder vigente em sua época? Sade assim o fez, ou será que não? Vale lembrar que a sociedade ocidental, não discute sexualidade, no cerne do erótico. Ela apenas alude. Os livros do Marquês, não continuam sendo vendidos como Carpeaux diz: “debaixo dos balcões”. Não só Sade, mas como também outros escritos ditos eróticos, tem sua procura, venda e leitura cercada por melindres, na maioria das vezes, e, quem os lê em público  corre o risco de ser considerado tão devasso, louco, quanto Sade.

8)                                         Referências

BARTHES, Roland.  O Prazer do texto; trad. J. Guinsburg. 4ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva. 2008.

BARTHES, Roland. Comentários. In: SADE, Marquês de. Os Infortúnios da Virtude. Trad. Celso Mauro Paciornik –. São Paulo: Iluminuras, 2008.

________________. A morte do autor In: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes. 2004. Disponível em: http://littric.blogspot.com/2008/07/morte-do-autor-roland-barthes.html - Acesso em 05/06/2010

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Cláudia Fares – São Paulo: Arx, 2004.

BORGES, Contador. Introdução. In: SADE, Marquês de. Os Infortúnios da Virtude. Trad. Celso Mauro Paciornik –. São Paulo: Iluminuras, 2008.

_______________. Tradução, posfácio e notas. In: SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova, ou Os Preceptores Imorais. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 2003.

CHARAUDEAU, Patrick.; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Coordenação de trad.: Fabiana Komesu - 2ª ed. – São Paulo: Contexto, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad.: Laura Fraga de Almeida Sampaio – 18ªed. - São Paulo: Loyola, 2009.
_________________. Vigiar e Punir, história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete — 37ª ed. Petrópolis, Vozes, 2009.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós - modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz ― Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

GIDDENS, Anthony.  A transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. Trad. Magda Lopes – São Paulo: Ed. UNESP, 1993.

GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso- diálogos & duelos. 2ªed. São Carlos, SP: Claraluz. 2006

MAIGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística  para o texto literário, trad.: Maria Augusta Bastos de Mattos. - São Paulo: Martins Fontes, 1996

SADE, Marquês de. Justine ou Os Infortúnios da Virtude. Trad. D. Accioly – 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Saga, 1968.


[1] Discentes do curso de Letras, turma 2008.2, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de Ciências Humanas e Tecnológicas - Campus XVI – Irecê – BA.
[2] Docente Orientador
[3] Em Prefácio de Justine ou Os infortúnios da virtude, 1968.
[4] V. FOUCAULT, 1970.
[5] Hutcheon, 1991, p.235
[6] Na tradução analisada Juliette é traduzida como Julieta.
[7] SADE, 1968, p.20
[8] Na contracapa de Os infortúnios da virtude. Ed. Iluminuras.
[9] Foucault. M. A História da Sexualidade III- O cuidado de si. 1985
[10] SADE, 1968, p.20
[11] Na contracapa de Os infortúnios da virtude. Ed. Iluminuras
[12] SADE, 1968,p. 20
[13] SADE, 1968, p.20
[14]  Grifo do autor
[15] BARTHES, 2008, p.17
[16] Opta-se neste artigo pela ortografia vigente em 1968, ano da tradução em que se baseia o estudo.
[17] BARTHES, 2004, p. 5
[18] SADE, 1968, p.22

[19] SADE, 1968, p.24
[20] SADE, 1968, p.25
[21] UFCG
[22] Ora, no século XVIII, segundo afirma Borges (2003, p. 224), “as duas correntes simétricas e opostas, a sentimental e a materialista, conheceriam seus representantes mais radicais em Rousseau e Sade, No primeiro, a alma não tem corpo, e seu fundamento é Deus, no segundo, o corpo não tem alma e deposita na natureza seu fundamento”.

[24] BORGES, 2003, p. 213
[25] SADE, 1968, p.26.
[26] Borges, 2003, pp. 222-3
[27] A individual esta para a fantasia, que não depende do outro, mas é possível realizar-se somente com um indivíduo, na orgia, a negação do outro implica este individualismo. No nível pessoal está o fetiche, onde o desejo se concentra num objeto, que pode ser o corpo alheio, a maioria das cenas sugeridas por Sade em Justine ou Os infortúnios da virtude há a relação erótica fetichista, onde o corpo tanto de Justine, quanto de Julieta são objetos do desejo alheio, diferindo no que se refere à Julieta, que ao mesmo tempo em que é objeto desejado, é sujeito desejante.
[28] SADE, 1968, p.83

[29] SADE, 1968, pp.86-7
[30] FOUCAULT, 1970, p.10,11

[31] SADE, 1968, p. 21
[32] FOUCAULT, 1970, p.15

[33] Grifo nosso.
[34] É uma característica comum dos papados do Renascimento, os eclesiásticos possuírem mulheres.
[35] (SADE, 1968, pp.17-8)
[36] (IDEM, 1968, pp. 21-2)

[37] (SADE, 1968, p.19)
[38]  Barthes, na contracapa de Os infortúnios da virtude. Ed. Iluminuras

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CAPITU: PRA QUE SABER? RECRIAÇÃO DE CAPITU NA CONTEMPORANEIDADE

Adriana Maria de Souza Novais *
Amanda da Silva Cascaes
Graziela Sousa Lima
Mariana Dourado Vasconcelos
Ricardina Pereira Duval Neta
Ricardo Araújo Alves
Maria Aurinívea de Assis**

RESUMO: A partir da observação acerca da representação da mulher na literatura brasileira, busca-se, nesse artigo, traçar o paralelo entre a mulher em Dom Casmurro, de Machado de Assis, e a recriação da figura feminina na contemporaneidade, no texto Capitu: Para que saber?, de Lya Luft, presente no livro Quem é Capitu? Para isto, propõe-se analisar a personagem de nome Capitu, criada por Machado de Assis que, passado mais de um século de sua criação, continua sendo o maior enigma feminino da literatura brasileira. Pretende-se evidenciar a figura feminina de Machado de Assis em contraponto a literatura contemporânea de Lya Luft, realizando o deslocamento do percurso da voz masculina para a voz feminina. Para fazer tal análise a metodologia adotada foi a de pesquisa bibliográfica.


Palavras - chave: representação feminina, Capitu, recriação e literatura.


1.  REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA LITERATURA

Por meio desse estudo procura-se entender a representação da figura feminina na personagem de Capitu que permite pensar a problemática social da mulher no contexto histórico do final do século XIX, época em que foi publicada a obra.
No século XVII, a mulher limitava-se ao silêncio e permanecia sob o jugo da sociedade, estando submissa a família, ao esposo e aos afazeres domésticos, ficando à margem de intervir nas questões políticas e sociais.
A representação da mulher na literatura assumiu moldes ditados por uma sociedade em que a figura masculina infundiu sua própria ideologia de mulher perfeita. A imagem da mulher era passada através de uma literatura a partir da visão masculina.
A representação da figura feminina foi idealizada pela maioria dos escritores masculinos a partir de modelos da Europa Imperialista com perfil de mulher completamente diverso da mulher “real”, descrevendo três tipos de comportamentos divergentes: mulher-anjo, mulher-sedução e mulher-demônio.
Segundo Ívia Alves no livro Interfaces, as loiras simbolizam a mulher-anjo, percebe-se isso claramente na figura de Ceci, personagem de José de Alencar em O Guarani. A mulher-sedução é representada nas personagens morenas e exprimem sentido pecador e tentador, características estas que não fazem parte da mulher ideal. A terceira, mulher-demônio, aquela não aceita pela sociedade, se refere à prostituta.


2. A CAPITU MACHADIANA

A obra machadiana foi publicada em 1899, é um dos romances brasileiros mais traduzidos para outros idiomas, cujo sucesso de crítica rendeu algumas adaptações para a televisão e para o cinema. Sem falar nas releituras e reescritas devido à grande ambiguidade existente no romance.
 Seu enredo decorre na cidade do Rio de Janeiro do II Império e narra em primeira pessoa a historia de Bentinho e Capitu. Segundo a crítica tradicional, a contestação mais comum na obra é a do adultério, o narrador-personagem procura, através da manipulação, induzir o leitor a autenticar o que lhe é mais comum: o ciúme.
Machado faz uma forte crítica à imposição social que principalmente a Igreja Católica faz à mulher oitocentista, empregando, como diz Ivia Alves, ”modelações”, padrões pré-estabelecidos que Bentinho em sua fala personaliza na figura de sua mãe ao chamá-la de boa criatura, possuidora de todas as virtudes que revela uma mulher perfeita.

Procura no cemitério de S. João Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa. [...] A minha ideia é dar com tal palavra uma definição terrena de todas as virtudes que a finada possui na vida (p.173).

Na obra machadiana, a voz feminina dificilmente aparece. A mulher é vista como um apêndice com relação ao homem, sendo reprimida, abafada. O narrador-personagem expressa o seu próprio desejo em relação à Capitu e julga-a pautado em uma memória passiva de engano, despertada por um sentimento de ciúme e de remorso.
            A personagem central do enigma aparece na narrativa machadiana no capítulo XIII, aos 14 anos, como figura idealizada por Bentinho, como se percebe na voz deste narrador-personagem:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de catorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhes pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem água de tocador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos (p. 22).

No trecho acima, percebe-se a maneira com que o narrador-personagem descreve Capitu ainda jovem, dando-lhe aspectos de mulher morena, sensual, ingênua e simples, aspectos estes que aparecem descritos por Ívia Alves, como parte integrante da mulher-sedução que ora é pecadora, ora é sedutora, com inteligência e argúcia. A ambiguidade impregnada nessa figura fascinante que trazia as “mãos sem mácula” denuncia uma possível mancha posterior. Bentinho consegue apontar desde muito cedo, o que ele percebe como sendo sinais de dissimulação na personalidade de Capitu. No momento em que esta rabiscava o seu nome e o nome de Bentinho no muro, e sendo surpreendida pelo pai, rapidamente consegue criar uma nova situação, o despistando e fazendo-o acreditar que estava desenhando um perfil que podia ser dele ou o de sua mãe, enquanto Bentinho permanece inerte e conclui:

Há cousas que só se aprende tarde; é mister nascer com ela para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde (p. 25).

Mais tarde, o olhar de Capitu é comparado ao de uma “cigana oblíqua e dissimulada”. O narrador-personagem retrata, nessa expressão, a presença marginal da cigana e o olhar não confiável, que passa a ser uma das características mais marcante em Capitu, esse olhar que fascina e envolve o narrador-personagem de tal forma que, em uma “retórica dos namorados” (p.49), este o compara ao mar em dia de ressaca que possuía uma força que o arrastava para dentro: “Olhos de ressaca? Vá de ressaca [...] a envolver-me, puxar-me e tragar-me” (p.49).
Extraindo a voz da personagem Capitu, Casmurro dá vazão a memórias presas ao jugo do ciúme e do remorso, deixando uma lacuna que possibilitou o grande enigma que é elemento do enredo.
Machado de Assis, em sua imaginação criadora, usou da ironia fulgurante e corrosiva, para questionar esse lugar-molde da mulher. No livro Dom Casmurro, monta a trajetória que é comum à mulher da época: ser filha, esposa e mãe.
Na posição de esposa, o narrador-personagem descreve a cena em que Capitu se apresenta ansiosa em expor o seu estado de casada em um evento de extrema relevância e recompensa pelo comportamento, diante da sociedade: “Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também” (p. 134).
Uma outra parte neste enigma era Escobar, a quem Bentinho tinha conhecido no seminário e por quem possuía grande confiança e amizade. É no momento em que Escobar falece, arrastado pela ressaca do mar, que Bentinho “mordido pelo dente do ciúme” percebe que Capitu aguçava um sentimento intenso comparado ao da viúva:

Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã (p. 157).

O narrador-personagem prossegue até o final do enredo, apresentando argumentos e contra-argumentos, tendo o leitor liberdade em se deixar levar ou não. O desfecho da história, descrito por Bentinho, conclui:

É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabasse juntando-se e enganando-me... (p.180).


3.  RECRIAÇÃO DE CAPITU NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO

O enigma de Capitu continua instigando o imaginário de leitores, escritores e críticos, que envolvidos pela polêmica desta personagem da literatura machadiana que provoca, atrai, apaixona e intriga, mas nunca se dá por inteira, nem tampouco cede ao desejo do outro, desperta o interesse de recriá-la, dando-lhe diversas nuances e roupagens, e que em sua maioria conservam a ambiguidade presente no enredo machadiano. 
O livro Quem é Capitu?, organizado por Alberto Schprejer, reune 15 dos grandes escritores, ensaístas e personalidades que recriaram a mais intrigante e ambígua personagem da literatura brasileira. Schprejer, no texto Vamos a história dos subúrbios, apresenta Capitu como “a personagem feminina mais polêmica, mais importante, ou mesmo mais bonita da literatura brasileira [...] Uma feminista antes do feminismo”. (p. 8-9)
Nesta obra, a atriz Fernanda Montenegro expressa, no texto Uma Nação Capitu, suas impressões e atribui o olhar de ressaca de Capitu aos olhos de todas as brasileiras: “Esse olhar nos pertence. E só a nós. É um patrimônio do feminino brasileiro” (p. 13).
Ao contrário da obra machadiana, Fernando Sabino em Amor de Capitu, recria o romance de Dom Casmurro narrando-o em terceira pessoa, apresentando um novo ponto de vista na busca de solucionar o mistério, enriquecendo-o e abrindo uma nova possibilidade de leitura.
Na composição musical intitulada Capitu, de Luiz Tatit, interpretada por Zélia Duncan, Capitu é cantada em suas múltiplas faces, “a mulher em milhares”, reforça a impressão de Fernanda Montenegro ao comparar o olhar de Capitu a de todas as brasileiras, como se pode ler no trecho abaixo:
“Capitu
A ressaca dos mares
A sereia do sul
Captando os olhares
Nosso totem tabu
A mulher em milhares”

A música desmistifica os estereótipos de beleza construídos pela sociedade e refletido na arte e na literatura e acrescenta a valorização dos sentimentos femininos:
“Capitu
Feminino com arte
A traição atraente
Um capítulo à parte”

            A obra machadiana foi traduzida para o cinema e para a televisão com a produção cinematográfica de Dom, filme brasileiro de 2003, com roteiro e direção de Moacyr Góes, e com a minissérie da Rede Globo intitulada Capitu.
4. A CAPITU DE LYA LUFT

No livro Quem é Capitu?, o texto ficcional Capitu: para que saber?, de Lya Luft, faz uma reeleitura através da lacuna de ambiguidade existente na obra machadiana, dando voz a Capitu, ora ocultada pelo narrador-personagem de Machado de Assis.
O questionamento no título de seu texto deixa explícita a irrelevância considerada pela a autora em desvendar o mistério da suposta traição de Capitu, pois o que é realmente relevante é a ambiguidade encontrada na obra, o que dá liberdade ao leitor em escolher um desfecho para a história. Como dizia Proust, citado na obra, “os melhores romances são aqueles que não terminam, ou seja, são aqueles que continuam sendo lidos e gerando novas leituras pelo tempo a fora” (p.11).
Lya Luft inicia o texto descrevendo o despertar literal de Capitu, trazendo à tona reflexões e questionamentos relacionados à sua existência como mulher: “Acordo. Bentinho já se foi” (p.75). Nesse trecho, Capitu evidencia sua percepção de existência, expressando um alívio pela ausência de Bentinho.  
Narrado em primeira pessoa, o texto de Lya Luft descreve Capitu, seus desejos e anseios, expondo suas insatisfações frente à condição de esposa e dona de casa. Ela se sente sufocada em sua condição de mulher no século XIX, a qual não tinha o direito de expor seus desejos sem que fosse recriminada por todos: “... vejo os olhos graves e a boca severa de minha mãe, os de meu pai nem posso imaginar...” (p. 75). A Capitu de Luft mostra-se insatisfeita, enquanto que em Dom Casmurro é aquilo que o narrador-personagem oculta e não o que ele descreve.
Rodeada por sentimentos cotidianos do casamento, Capitu tem a sensação de estar sendo espionada pelo fantasma do “aborrecimento pegajoso, de não saber mais nada” e questiona-se a respeito da sua vida, mostrando-se por inteira em seus mais íntimos desejos:

O que é minha vida? Como está minha alma, o que sente o meu corpo? Nem vou indagar o que deseja porque isso é secreto até para mim mesma, mas deveria ser assim? (p. 75)

Capitu apresenta-se senhora de si, dona de sua própria voz, envolvida pelo véu da ambiguidade que lhe é intrínseco, devaneia entre o sonho e a realidade, o desejo do que foi em contraponto ao que vive.
No texto Capitu: para que saber?, Capitu permite se envolver pelo seu sentimento de insatisfação pela vida que leva, e vê em seu amigo Escobar um refúgio, a personificação de seu desejo, uma fuga da monotonia em que vive: “O que existe em Escobar que ultimamente me atiça tanto quanto meu marido me entedia?” Não afirma e nem nega a traição e faz uma descrição do que seria essa loucura, narrando seus momentos com Escobar.

Era como se eu estivesse sonâmbula, era um sonho, um sonho apenas... e num quarto em penumbra estávamos tão apressados, tão sôfregos que nem tiramos a roupa, era um esfregar de pele, um apalpar fortíssimo, um procurar e encontrar lugares maravilhosos um no outro. (p. 79)

Capitu afirma ser, pela primeira vez, ela mesma, dizendo que não se conhecia dizendo-se “livre, forte, poderosa e onipotente” (p. 80) Mas a noite, no desalinho da cama, se questiona se tudo aquilo era sua vida real, ou mero sonho, do qual definitivamente não queria acordar: “Ou minha realidade é meu amante, e o cotidiano apenas um sonho sem nenhum encantamento [...]?” (p. 81).
Tendo sua maior e última realização como mulher do século XIX, Capitu encontra-se grávida: “Eu, a estéril, engravidei” (p.81) Vivendo esse grande momento, Capitu diz deixar de ser a Capitu cigana para se tornar “a matrona cheirando a leite e bebê”. Mesmo nesse momento, Capitu enfatiza o distanciamento que a gravidez lhe proporciona em relação a Bentinho: “A gravidez vai ser uma boa desculpa para não haver sexo entre nós...” (p.81).
O sentido ambíguo do texto continua personificado neste filho tão desejado, a própria Capitu diz-se perturbada com certas inquietações:

“Vai ser fruto da Capitu, bem assentada (ou conformada) ou da louca (talvez feliz)? Vai ser filho deste meu leito conjugal apaziguado ou de lençóis cheirando a pecado?” (p. 82).

A linha entre a fantasia e a realidade já tão conhecida da narradora-personagem, reforça-se nesta tênue ambiguidade em que ela própria não sabe a verdade do que aconteceu, se tudo aquilo realmente existiu ou se foi só um devaneio do seu imaginário e se questiona: “Qual a importância disso agora? Ninguém saberá”. Diante desta nova condição de mulher, declara-se salva. 
O misterioso conflito de Dom Casmurro que atravessou o século XX e adentra o século XXI, persiste no imaginário de vários leitores e escritores: Capitu traiu Bentinho? Há uma ponte entre este questionamento que está diretamente ligada à interpretação do próprio leitor, a qual desenvolvendo a leitura chegar à sua própria conclusão sobre este enigma, visto que, a obra deixa lacunas quanto à afirmação ou negação da traição.
Contudo, as características como apaixonante, desafiadora que se extrai da obra, a que se considerar uma corrente linha de argumentos demolidores e definitivos que aprovam a traição de Capitu, dentre elas está a de Dalton Trevisan: “Se Capitu não traiu Bentinho, Machadinho chamou-se José de Alencar”. Outros argumentam de forma tão magnífica e acreditam que Capitu jamais traiu e que Bentinho era um completo delirante; misto de Otelo e Hamlet, em busca de vingança pela traição que só teria ocorrido em sua fantasia.


REFERÊNCIAS

ALVES, Ivia. Imagens e representações da mulher na literatura. In: Interfaces. Ilhéus. Ed. Editus, 2005.

Capitu traiu Bentinho? Disponível em <http://www.vidadeestudante.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=26>  Acesso em 07/08/2010.

Dica de livro: Quem é Capitu?. Disponível em <http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=922148> Acesso em 04/08/2010.

Resumo de Dom Casmurro. Disponível em <http://resumos.netsaber.com.br/ver_resumo_c_27.html> Acesso em 04/08/2010.

SCHPREJER, Alberto. (Org.) Quem é Capitu? Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, 2008.



* Graduandos em Letras pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB CAMPUS XVI, Irecê-BA.
** Professora Doutoranda da UNEB, Campus XVI, Irecê-BA.

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GABRIELA E SEUS DOIS AMORES: JORGE AMADO E DORIVAL CAYMMI

                                                                                                                                                               Bruna Lago dourado*   
                                                                                                                   Itamar campos Ramos
                                                                                              Najara Alves Pereira
                                                                                                        Tiago Antunes Feitoza

                                                                                                          Marielson Carvalho**


Resumo: Este artigo propõe um estudo sobre a personagem Gabriela, no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e na canção Modinha para Gabriela de Dorival Caymmi. A partir desses dois gêneros textuais, busca-se analisar essa figura feminina, por meio de características como sensualidade, ingenuidade, simplicidade, desapego ao status social e bens materiais, liberdade sexual e afirmação de identidade. Através desses elementos, procura-se compreender quem é essa personagem e como essas características a fizeram símbolo da mulher baiana no imaginário popular.
 

Palavras- chave: Gabriela; Jorge Amado; Dorival Caymmi.


O cheiro de cravo
A cor de canela
Eu vim de longe
Vim vê Gabriela[1]

(moda da zona do cacau)
  1. Introdução

A partir de uma proximidade estética e temática entre Jorge Amado e Dorival Caymmi, busca-se neste artigo analisar uma personagem, de nome Gabriela, cujo sucesso difundiu-se por diversos lugares no mundo. Por meio desse estudo procura-se entender quem é essa personagem e como as suas características a fizeram símbolo da mulher baiana e, por extensão brasileira, no imaginário popular. Para isso, fez-se necessário a utilização do romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado e da canção Modinha para Gabriela, de Dorival Caymmi.
A obra de Jorge Amado, publicada em 1958, superou todas as expectativas por vender, em apenas duas semanas, 20 mil exemplares. Vencedora de cinco prêmios, o romance foi traduzido para 29 idiomas. Além disso, seu sucesso, de alcance extra-literário rendeu várias adaptações para a televisão, artes visuais e cinema. Sem falar, é claro, que a obra serviu de inspiração para diversas canções, entre elas Modinha para Gabriela.
Seu enredo se desenvolve na cidade de Ilhéus, em 1925. Ano de imenso progresso, resultado das profundas mudanças econômicas e políticas, garantidas pelo sucesso da colheita do cacau. Abriam-se ruas, construíam-se palacetes, instalavam-se bancos, fundavam-se clubes, transformavam o cenário da cidade. Mas, apesar de tanto desenvolvimento, os habitantes ilheenses conservavam costumes tradicionais. Vigoravam em Ilhéus o machismo e o paternalismo. Homens traídos tinham que lavar a honra com sangue. Além disso, a narrativa traz à tona disputa política entre Mundinho Falcão e o coronel Ramiro Bastos, o assassinato de dona Sinhazinha e o seu amante, o dentista Osmundo, pelo coronel Jesuíno Mendonça e a história de amor entre a mulata Gabriela e o dono do bar Vesúvio, Nacib.
No que se refere às adaptações, para a televisão foram duas. A primeira, no ano de 1960, pela TV Tupi, teve como protagonista a atriz Janete Vollu. Já a segunda, no ano de 1975, pela Rede Globo, conferiu grande sucesso para a atriz Sônia Braga, no papel de Gabriela. É notável a grande diferença entre as duas novelas, já que enquanto a primeira mostrou uma Gabriela branca, a segunda foi mais fiel a obra e levou para a tela, uma mulata, assim como a descrição de Jorge Amado na obra. Além disso, é importante destacar que na segunda adaptação a canção Modinha para Gabriela fez grande sucesso na época, como tema da novela.

2. A Gabriela de Jorge Amado

A personagem central da narrativa, Gabriela, que só aparece no fim do primeiro capítulo, é uma jovem sertaneja, que foge da seca com um grupo de retirantes para a cidade de Ilhéus, em busca de conseguir emprego como lavadeira ou cozinheira. Jorge Amado a apresenta:
Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem, como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados.[2]

  O modo como autor faz a descrição da personagem, remete a forma que José de Alencar em seu romance Iracema (1998), utilizou para idealizar a índia tabajara, seja pela harmonia das personagens com a natureza ou ainda por possuírem a mesma cor, ambas são morenas.
        Mesmo vestida com trapos e coberta de poeira, devido à viagem, a personagem é descrita como alguém de corpo esguio, rosto sorridente e voz cariciosa. Além disso, a jovem desperta o interesse em clemente, outro retirante que se encontra no mesmo grupo que ela. Apesar de não conseguir esquecê-la, ele não a procura. É ela que, “com seu passo de dança e seus olhos de inocência”[3] entrega-se a ele. Mas, quando Clemente propõe relacionamento sério, ela não aceita, Gabriela não quer perder a liberdade.
       Assim que chega a Ilhéus, os retirantes ficam acampados no mercado de escravos, a fim de serem contratados pelos ricos coronéis da região. Nesse tempo, Nacib, em busca de uma cozinheira é levado para lá, onde conhece Gabriela e a contrata. De ímpeto, não repara na beleza da moça, por ainda está muito suja de poeira.
No entanto, após voltar para casa depois de um dia exaustivo de trabalho, Nacib encontra a empregada dormindo em uma cadeira, com seus cabelos longos, agora limpos, espalhados sobre os ombros. “Um rasgão na saia mostrava um pedaço da coxa cor de canela [...] Corpo de mulher jovem, feições de menina [...] Dela vinha um perfume de cravo [...]”4 .O árabe fica encantado com a beleza da mulata, tem vontade de se aproximar, mas “ela tinha um ar ingênuo, talvez até fosse moça donzela”5. Uma mistura de sensualidade e ao mesmo tempo ingenuidade foi o que Nacib enxergou. De fato, Gabriela carrega em toda obra essa ambigüidade.
Não tarda muito para que o encontro amoroso entre Gabriela e Nacib aconteça. Assim, após chegar em casa, sente o árabe uma vontade enorme de entregar o vestido e os chinelos que havia comprado para a ela. Viu a porta do quartinho dos fundos aberta, onde dormia a empregada. Resolveu entrar e, ao olhar para um pedaço da perna da mulata, ficou excitado. A jovem acorda:
Com a mão, instintivamente, procurou a coberta mas tudo que conseguiu – por acanhamento ou por malícia? – foi fazê-la escorregar da cama. Levantou-se a meio, ficou sentada, sorria tímida. Não buscava esconder o seio, agora visível ao luar [...] Ela sorria, era de medo ou era para encorajar? Tudo podia ser, ela perecia uma criança, as coxas e os seios à mostra como se não visse mal naquilo, como se nada soubesse daquelas  coisas, fosse toda inocência. 6[4]

Nacib, após ver sua nudez ressurgida pelo luar, não se contém e toma-a em seus braços. Segue-se daí por diante um relacionamento amoroso entre o árabe e a mulata.
Jorge Amado brinca com esse duplo sentido e instaura sob Gabriela, um olhar erótico e ao mesmo tempo ingênuo. Ainda sobre essa duplicidade, pode-se dizer que Gabriela possui o que Dorival Caymmi, em suas canções que representam a figura da mulher baiana, chamou de dengo. Em suas palavras:
Não sei de palavra tão bonita quanto o ‘dengo’. Dengo... Denguice... Dengosa... Palavras que dizem muita coisa, que definem, por vezes, a personalidade de uma mulher. O sol do nordeste, aquele calor das tardes pedindo rede e água de coco, pedindo cafuné e dando ao corpo certa moleza gostosa, produz o dengo, que por vezes está apenas no quebranto de um olhar, às vezes na modulação da voz terna, de súbito gesto como um convite. Não sei como definir certas mulheres senão pelo dengo que elas possuem.7

Para Francisco Bosco: “o dengo tem esse quê de infantil, entretanto misturado a uma sensualidade adulta e poderosa”8. A personagem Gabriela ora se apresenta como uma mulher com um poder de sedução inquestionável ora uma menina de atitudes inocentes: “Arrancou os sapatos, largou na calçada, correu pros meninos. De um lado Tuísca, de outro lado Rosinha. Rodando na praça, a cantar e a dançar”9. É certo que a personagem não gosta de dançar valsa ou tango, mas adora brincar com as crianças, dança e canta as cantigas de roda:

Palma, palma, palma
Pé, pé, pé
Roda, roda, roda,
Caranguejo peixe é. 10

Ainda sobre o dengo, Caymmi compôs um samba chamado “O dengo que a nega tem”, onde o compositor o coloca em praticamente todas as ações da mulher, como uma qualidade feminina:

É dengo, é dengo, é dengo, meu bem
É dengo que nega tem
Tem dengo no remelexo, meu bem
Tem dengo no falar também
Quando se diz que no falar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem

Quando se diz que no andar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no sorrir tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no sambar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem11

Assim como a mulher descrita no samba, Gabriela tem dengo na fala, no jeito de caminhar: “Uma voz cantada de nordestina [...] O balanço do corpo no andar” 12.
O fato de Gabriela ser ótima cozinheira ascende os negócios no bar de Nacib. Aliás, cozinhar bem e ser uma boa dona de casa tornam-se elementos que seduzem o árabe. Para Francesco Alberoni, na sedução feminina:
A mulher é artífice de uma continua transfiguração de si mesma e da casa. Qual haja sempre algo de novo, de agradável para si e para o amado. Algo que o faça exclamar: “que lindo, muito bem, que maravilha!”. Suscitar sempre novas emoções. Revitalizar o desejo no mesmo homem. Aquele homem que gostaria de se esquecer-se dela, ou se esquece. 13 [5]

Nacib sente-se atraído não apenas pelo corpo ou o jogo de amor que o consume no leito, mas também pelo tempero de sua comida, pelo capricho em que prepara a casa, pela sensação de acolhimento que obtém ao lado de Gabriela.

Como arranjava tempo e forças para lavar a roupa, arrumar a casa – tão limpa nunca estivera! – cozinhar os tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. Parecia adivinhar o pensamento de Nacib, adiantava-se à suas vontades, reservava-lhe surpresas: certas comidas trabalhosas das quais ele gostava – pirão de caranguejo, vatapá, viúva de carneiro -, flores num copo ao lado de seu retrato na mesinha da sala de visitas, troco de dinheiro dado para fazer a feira, essa idéia de vir ajudar no bar.14 [6]

Não só Nacib é seduzido por Gabriela, mas, praticamente todos os homens que costumam freqüentar o bar passam a ir cada vez mais ao local para vê-la, saborear sua comida, fazer-lhe elogios e até mesmo propostas indecentes. O árabe sente ciúmes e medo de perdê-la: “O que acontecia era ser-lhe impossível imaginar uma noite sequer sem Gabriela, sem o calor de seu corpo”15. Esse sentimento leva-o a pedi-la em casamento, mesmo contra as tradições de sua família, que preserva os valores impostos pela sociedade. Sem dúvida, uma mulata, cozinheira, sem família não correspondia à representação de uma mulher ideal para se casar.
Talvez outro traço que chama bastante atenção em Gabriela seja o seu total desapego pelas coisas materiais e o gosto pelo trabalho. São qualidades fortíssimas na personagem a humildade e simplicidade. Há toda uma reflexão em suas atitudes no que se refere à recusa pelas coisas que lhes são oferecidas.

Estava contente com o que possuía, os vestidos de chita, as chinelas, os brincos, o broche, uma pulseira, dos sapatos não gostava, apertavam-lhe os pés. Contente com o quintal, a cozinha e seu fogão, o quartinho onde dormia, a alegria quotidiana do bar com aqueles moços bonitos [...].16
 
           Gosta das chinelas, dos sapatos não. A não aceitação pelos sapatos é uma perfeita representação de recusa por uma vida luxuosa, com status social. “Gente nos trinques, mulheres enjoadas, gosto não [...] Dizia que ela era uma senhora, a senhora Saad. Não era não, era só Gabriela, de alta roda gostava não”17. Através da personagem, Jorge Amado faz uma crítica ao sistema capitalista.
É possível dizer que Gabriela é a típica representação do ideal erótico masculino. Alguém que não pede nada em troca do seu amor, nem coisas materiais, nem um compromisso que seja reconhecido socialmente, contenta-se com sua condição de amante. De acordo com Alberoni:

A mulher que encarna a fantasia erótica desresponsabiliza o homem do seu desejo. Não pede ao prazer compensações éticas. Se te agrado - esta é a sua mensagem – aqui estou, toma-me. Se queres ir embora, de mim não terás nem aborrecimento, nem queixas, nem súplicas, nem chantagens, nem lamentações. Não te terei preso a mim por causa de filhos, mãe, parentes, irmãos. Não preciso do teu dinheiro. Não sou ciumenta, não guardo rancor. E, finalmente se quiseres voltar, aqui estou ás tuas ordens. 18. [7]
É certo que a mulata não quer casar: “Casar comigo? Por quê? Precisa não, dona Arminda, porque vai casar?”19; [8]não tem ciúmes: “Deitava com ela e as demais. Não se importava. Podia ir com outra”20; não pede nada em troca dos seus carinhos e mesmo quando dona Arminda a tenta: “Você é mais tola do que eu pensava. Seu Nacib podendo lhe dar de um tudo... Tá rico, seu Nacib! Se pedir seda, ele dá; se pedir moleca pra ajudar no trabalho, ele contrata logo duas; se pedir dinheiro, é o dinheiro que quiser, ele dá’’21; ela sempre responde: “Preciso não... Pra quê?” 22, e quando ele a procura, lá está ela a lhe servir: “Contente com seu Nacib. Era bom dormir com ele, a cabeça descansada em seu peito cabeludo, sentindo nas ancas o peso da perna do homem gordo e grande, um moço bonito” 23.
Além da sensualidade, ingenuidade, simplicidade e o desapego ao status social, já destacados, há outro elemento que caracteriza a personagem do romance e, sem dúvida, instaura outra perspectiva, que não a reduz as características já apresentadas. Trata-se da liberdade sexual de Gabriela. É nesse aspecto que a mulata revela não ser apenas um objeto de desejo, mas também um sujeito que age conforme suas vontades. Sobre esse novo olhar sob a personagem, Ricardo Ramos escreve:
Gabriela, no entanto vai muito mais fundo que a pele e a sensualidade. Gabriela não seria tão importante se fosse apenas um objeto sexual. Jorge Amado, entre outras coisas, escreveu em Gabriela um grande romance de liberação feminina.24

No capítulo titulado “Gabriela com pássaro preso”, o árabe Nacib presenteia a empregada com um pássaro, preso em uma gaiola. Aproveitando-se da situação, confessa o seu ciúme e a pede em casamento. É possível dizer que o pássaro simboliza a figura de Gabriela e a gaiola o pedido de casamento de Nacib. O momento em que a mulata abre à gaiola e liberta o pássaro significa o desejo em ser livre e não prender-se ao casamento. É como se o próprio título do capítulo sugerisse que se casando ela assumiria a condição de pássaro preso.
Apesar de aceitar a proposta de casamento e de amar o árabe Nacib, a mulata não perde a ânsia por liberdade:
Seu Nacib, tão grande, quem ia dizer? Mesmo na hora, falava língua de gringo, tinha ciúmes... Que engraçado! Não queria ofendê-lo, era homem tão bom! Tomaria cuidado, não queria magoá-lo. Só que não podia ficar sem sair de casa, sem ir à janela, sem andar na rua. De boca fechada, de riso apagado. Sem ouvir voz de homem, a respiração ofegante, o clarão dos seus olhos. Peça não seu Nacib, não posso fazer.25

Uma vez esposa de Nacib, ou senhora Saad, inicia-se um processo de mudança na vida da personagem, que é obrigada a se ajustar aos padrões da sociedade ilheense.
Não fale alto, é feio, cochichava-le no cinema. Sente-se direito, não estenda as pernas, feche os joelhos. Com esses sapatos, não. Bote os novos, para que tem? Ponha um vestido decente. Vamos hoje visitar a minha tia. Veja como se comporta [...]26[9]

Gabriela não consegue se habituar a nova vida de casada e perdi o ingrediente que a faz singular. A mulata não é mais a amante violenta e lasciva: “Apenas mudara na cama, como se aquelas discussões – nem chegava a ser brigas – e exigências refreassem seu ardor, contivessem seu desejo, esfriassem seu peito”27.
O não se habituar as novas regras e o desejo em ser livre ficam bastante evidenciados no momento em que a mulata comete o adultério. Gabriela trai sem medo de ser punida. Este aspecto marca uma profunda mudança na condição da personagem, que passa a agir como sujeito desejante e rompe com a idéia de mulher como propriedade do marido.
Nacib não a mata, como é de costume, apenas agride fisicamente e se separa da mulata. Sua honra não é afetada, visto que os documentos de Gabriela foram forjados para o casamento. O árabe sente sua falta, principalmente dos seus dotes culinários. Por isso, a contrata novamente e reata a parceria cama e mesa.
Definir quem é essa mulata, com cheiro de cravo e cor de canela não é tarefa fácil. Talvez a fala de um personagem, já em um dos últimos capítulos do romance se aproxime um pouco do que Gabriela representa: “[...] Gabriela é boa, generosa, impulsiva, pura. Dela podem-se enumerar qualidades e defeitos, explicá-la jamais. Faz o que ama, recusa-se ao que não lhe agrada. Não quero explicá-la. Para mim basta vê-la, saber que existe” 28·[10]
Mulata, sensual, trabalhadeira, espontânea, alegre, ingênua, simples, livre... Não há como negar que essas características dizem muito sobre a Bahia, ou melhor, mulher baiana. Gabriela ao reunir todos esses elementos torna-se um símbolo, um estereótipo que representa a mulher baiana, brasileira. O próprio autor em entrevista (1990) confessou: “Queria criar uma mulher que fosse o símbolo da mulher brasileira”29.

2. A Gabriela de Dorival Caymmi

O universo feminino de Caymmi se assemelha em muito com o de Jorge Amado. Em seus sambas, as mulheres possuem uma sensualidade poderosa, ao mesmo tempo em que são meigas e delicadas, em suma, dengosas. Homens e mulheres se relacionam eroticamente. Não há lugar para amor, compromisso e problemas. Tais mulheres são livres para desfilarem sua sensualidade por onde passam.
Talvez, devido a essa proximidade temática, Caymmi tenha resolvido compor a canção Modinha para Gabriela. Escrita para ser tema da abertura da novela Gabriela, pela Rede Globo de Televisão, em 1975, a canção foi interpretada pela cantora Gal Costa e alcançou enorme sucesso na época.
De linguagem clara, direta e coloquial, a modinha apresenta uma letra suscita e de fácil apreensão. Baseada na obra de Jorge Amado, a Gabriela de Caymmi possui praticamente todas as características da personagem do romance. De início, o compositor a apresenta como alguém que não conhecia nada do mundo, mas que se realiza por ser aquilo que simplesmente é: Gabriela.

Quando eu vim pra esse mundo,
Eu não atinava em nada,
Hoje eu sou Gabriela,
Gabriela iê, meus camaradas.

 Eu nasci assim,
 Eu cresci assim,
 E sou mesmo assim,
 Vou ser sempre assim,
 Gabriela, sempre Gabriela.

Quem me batizou,
Quem me nomeou,
Pouco me importou,
É assim que eu sou,
Gabriela sempre Gabriela

Eu sou sempre igual,
Não desejo o mau,
Amo o natural, etc. e tal,
Gabriela, sempre Gabriela.

Na segunda estrofe, é possível dizer que a personagem da modinha procura a todo o momento afirmar sua identidade. Gabriela não quer deixar de ser aquilo que ela é, e por mais que os outros não gostem do seu jeito, ela não se importa e afirma que vai ser sempre assim.
Esse desejo em querer ser sempre Gabriela, pode ser evidenciado na narrativa de Jorge Amado, no momento em que a mulata se casa com Nacib e precisa se transformar em uma esposa respeitável, na senhora Saad.  Sempre que Nacib dizia-lhe que agora não era mais uma simples empregada e sim uma senhora de posse, de representação, ela respondia: “Sou não, seu Nacib. Sou só Gabriela”30[11].Ser a senhora Saad significava para Gabriela uma verdadeira perda de identidade. Ela teria que ser outra pessoa, com outros costumes, viver de outra maneira a qual ela não gostava.
Na terceira estrofe é possível inferir que Gabriela, assim como na obra de Jorge Amado, é alguém sem família, sozinha no mundo, entregue ao seu próprio destino.
Já na quarta estrofe fica evidente o lado bom da personagem, incapaz de fazer mal a alguém. Mesmo no romance em que Gabriela comete adultério, não faz por maldade: “Nunca pensou ofendê-lo, jamais magoá-lo. Seu Nacib era bom, melhor não podia ser, no mundo não havia”31. Além disso, o verso: “amo o natural”, indica uma harmonia com a natureza. De fato, a mulata adora os animais, as flores, o sol a esquentar-lhe o seu corpo. É possível dizer que Gabriela é a típica representação do natural: “Era de natural risonha e brincalhona”32, seja por sua espontaneidade ou ainda por agir conforme os seus instintos.
Ainda sobre a quarta estrofe, o primeiro verso: Eu sou sempre igual”, associa-se a figura da personagem que se mantêm de maneira irredutível com a ânsia de ser sempre a mesma, livre, dona de si, mesmo com tantas mudanças sendo-lhe impostas após o casamento:

Pra calçar os sapatos era um inferno. Para não falar alto no cinema, não mostrar intimidade com as empregadas, não rir debochada, como antes, para cada freguês do bar encontrado por acaso.  Para não usar, quando saiam a passear, a rosa atrás da orelha! Deixar conferência por um circo mais mambembe[...] 33[12]


Considerações Finais

Não há como negar que tanto Jorge amado como Dorival Caymmi foram responsáveis por construir e difundir uma “certa” imagem sobre a Bahia, ou melhor, mulher baiana.  Gabriela é, em suma, essa representação. Não se pode negar ainda o sucesso e as vantagens que a propagação dessa imagem adquiriu e como ela se tornou tão popular. Ao longo do tempo, o nome Gabriela passou a ser utilizado para denominar restaurantes, bares, bebidas a base de cravo e canela e empresas de turismo, etc.
O estereótipo de mulher mulata, fogosa, sensual e alegre é freqüentemente utilizado pela mídia como meio de atrair turistas para a Bahia. Não há dúvidas de que muitos que não conhecem o estado vão para lá com a esperança de encontrar Gabrielas espalhadas por seus vários cantos.
É importante alertar para os problemas que o uso dessa imagem pode acarretar. A mulher baiana não pode ficar restrita a essa representação construída por Jorge Amado e Dorival Caymmi. Nem todas as baianas são mulatas, belas, fogosas e sexualmente disponíveis. Quando se reduz a imagem de um lugar, ou pessoas desse lugar a um estereotipo, as diferenças são esquecidas e uma identidade falsa é construída.



Referências


ALBERONI, Francesco. O erotismo. 5. ed. São Paulo: Rocco, 1988.


ALVES, Ivia; et al. Leituras Amadianas. Salvador: Quarteto/ Casa de Jorge Amado, 2007.


AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela: crônicas de uma cidade do interior. 89. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.


BOSCO, Francisco. Dorival Caymmi. São Paulo: Publifolha, 2006.


DUARTE, Eduardo de Assis. “Classe, gênero, etnia: povo e público na ficção de Jorge Amado”. In: Cadernos de Literatura Brasileira: Jorge Amado. São Paulo: Institito Moreira Salles, 1997. P. 88 a 97.


GOLDSTEIN, Ilana seltzer. O Brasil Best Seller de Jorge Amado: Literatura e Identidade Nacional. São Paulo: Senac, 2003.


GOLDSTEIN, Ilana seltzer; SCHWARC, Lilia Moritz. Cadernos de Leituras: o universo de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


GOLDSTEIN, Norma Seltzer (org.). Cadernos de Leituras: a literatura de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.





* Docentes do curso de Letras, turma 2008.2, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de Ciências Humanas e Tecnológicas - Campus XVI – Irecê - BA
**Professor Orientador
¹AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. 89. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
2AMADO, Jorge, 2004, p. 77
3Idem, 2004, p. 79
4Idem, 2004, pp. 126.7
5Idem, 2004, p.127

6Idem, 2004, p. 144
7BOSCO, Francisco, 2006, p. 30
8Idem, 2006, p. 30
9 AMADO, Jorge, 2004, p. 22810
10 Idem, 2004, p. 228

11Canção encontrada no disco “Eu não tenho onde morar – Dorival Caymmi”, lançado em 1960. BOSCO, 2006, p. 30
12AMADO, Jorge, 2004, p. 127
13ALBERONI, Francesco, 1986, p. 43
14AMADO, Jorge, 2004, p. 166




15 Idem, 2004, p. 199
16 Idem, 2004, p. 183
17AMADO, Jorge, 2004, PP.254.6
18ALBERONI, Francesco, 1988, p. 61



19Idem, 2004, p. 181
20Idem, 2004, p. 204
21Idem, 2004, p. 181
22Idem, 2004, p. 181
23Idem, 2004, p. 183
24RAMOS apud ALVES, 2007, p. 80

25AMADO, Jorge, 2004, p.204
26Idem, 2004, p. 289
27 AMADO, Jorge, 2004, p. 289



28 AMADO, Jorge, 2004, p. 319
29 GOLDSTEIN, Ilana, 2009.


30 AMADO, Jorge, 2004, p. 237
31 Idem, 2004, p. 293

32 Idem, 2004, p. 79
33 Idem, 2004, p. 255

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A DESSACRALIZAÇÃO DA IMAGEM DE DEUS EM CAIM

Ana Paula Araújo de Morais
Danúbio Ribeiro da Silva
Eleandra Rocha Bernardino
James Wilker Freire Machado
Naiara Pereira de Freitas
Joabson Lima Figueiredo


“Não sei se Deus existe. Mas seria melhor para sua reputação que não existisse.”

Jules Renard

“É um homem o disparate de Deus ou Deus, um disparate do homem?”

Friedrich Nietzsche


RESUMO: Este artigo se apresenta com propósito de analisar as faces dessacralizadas da imagem de Deus no livro Caim (2009) de José Saramago, procurando entender, a partir da filosofia anticristã de Nietzsche e de outros aportes teóricos, os motivos que levaram o escritor a desconstruir a concepção judaico-cristã de um Deus justo e bondoso, e sua crítica ao legado moral do cristianismo para o ocidente. O livro é uma releitura irônica do mito de Caim e de várias passagens do Antigo Testamento da Bíblia, que são passíveis de diferentes interpretações.

Palavras-Chave: Saramago. Deus. Cristianismo. Dessacralização. Caim.

Introdução
O objetivo deste estudo é apresentar a releitura que José Saramago faz do Deus bíblico no livro Caim (2009), identificando como o autor dessacraliza e humaniza a divindade máxima do cristianismo e atribui-lhe a responsabilidade dos genocídios promovidos pelas religiões em seu nome. No livro, Saramago faz uma recriação bem sarcástica e criativa do mito de Caim, personagem do antigo testamento da Bíblia, trazendo uma nova versão dos acontecimentos e também a personificação de um Deus dessacralizado, irascível e humanamente imperfeito. O livro é o retorno ao tema da desconstrução do texto bíblico já presente em outra obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) do próprio autor. Polêmico por natureza, essa abordagem suscitou repúdio e empatia em diversos leitores (TOLEDO, 1991, p.90).
O presente artigo irá analisar a desconstrução da personalidade de Deus na obra, que desde o nome, grafado em letras minúsculas, até as atitudes contraditórias a um ser superior e perfeito, é ridicularizado pelo autor. Saramago traz as facetas de um Deus orgulhoso, vingativo, prepotente, maquiavélico e arrependido de suas criações, por não poder controlá-las e nem mesmo compreendê-las: “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (SARAMAGO, 2009, p. 70).
No livro, o personagem Caim é usado para questionar e confrontar deus, travando uma luta incessante para atrapalhar os planos divinos, já que não pode matá-lo, e responsabilizando a divindade bíblica pelo sofrimento, pela dor e pelos morticínios humanos. Essa tentativa de matar Deus, baseada na filosofia de Nietzsche, é uma crítica severa à moralidade e ao legado do cristianismo. É a partir das concepções de Nietzsche, que essa análise vai tentar compreender o objetivo de Saramago em dessacralizar a imagem de deus na obra.

1. “Nunca se matou tanto em nome de Deus”
José Saramago, escritor português, ateu convicto, primeiro escritor da língua portuguesa a receber um Prêmio Nobel de Literatura (1998), utiliza sua escrita extremamente peculiar, de estilo inovador, para denunciar as injustiças sociais e políticas, os descalabros do sistema capitalista e a cegueira intolerante das religiões que justificam todos os seus atos inconseqüentes em nome de uma entidade divina. Seus romances trazem um retrato da sociedade contemporânea e desperta os leitores para o debate, a reflexão do mundo em que vivemos. (TOLEDO, 1991, p.91)
No livro Caim, lançado em 2009, Saramago retorna, assim como em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), aos textos bíblicos para reconstruir uma nova leitura da Bíblia e incitar a polêmica e o debate sobre os valores do cristianismo e a existência de Deus. Mesmo sendo ateu, o escritor afirma que não tem como fugir da concepção do divino, por viver numa sociedade arraigada aos preceitos da religião cristã e sujeita aos caprichos culturais de submissão aos mandamentos bíblicos. “Embora seja uma pessoa que não crê, não tem fé, ou, para usar a palavra certa, seja ateu, não posso ignorar que vivo num mundo que não é edificado na ausência da idéia de Deus, mas, ao contrário, foi todo ele feito na suposição de uma entidade sobrenatural, transcendente, pai da criação”. (SARAMAGO, 1991)
Deste modo, no livro, Saramago traz o absurdo de um deus que na Bíblia é manifestado como um ser ditatorial, cruel e orgulhoso. Portanto, na obra deus acaba sendo responsabilizado pelo narrador como o autor intelectual do primeiro assassinato da história do homem, o de Abel, por não aceitar a oferenda de Caim, e das mortandades aterradores promovidas pela intolerância religiosa que se seguiram por toda a existência humana. O autor atribui o obscurecimento opressivo e alienador de uma sociedade injusta, preconceituosa, individualista e sanguinolenta ao legado do cristianismo. Para ele “nunca se matou tanto em nome de deus”:
Desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. (...) Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. (...). E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, (...) em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. (SARAMAGO, 2001)

Segundo Salma Ferraz (2009) ao longo de suas obras, Saramago vai apontando perfis de Deus que o incomodam. “Sua obra é uma catedral, ao longo da qual ele vai metodicamente desconstruindo a concepção judaico-cristã de um Deus justo e bondoso” (FERRAZ, 2009):
Em Terra do Pecado (1947), seu primeiro romance, critica um deus que não gosta de prazer e de sexo; em Memorial do Convento (1982), critica aqueles que edificam grandes catedrais para Deus; na peça de teatro In Nomine Dei (1993), critica as guerras que se fazem em nome de Deus. Finalmente em O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), questiona o Deus de amor que deixa que seu único filho seja crucificado e que não concede o perdão a Lúcifer (FERRAZ, 2009).

Salma defende que o autor de Caim faz uma severa crítica ao cristianismo, estabelecendo que este já nascesse com uma das mais violentas e sangrentas imagens históricas da humanidade: Jesus pendurado numa cruz. O que remete a Friedrich Nietzsche (1900), filósofo alemão, e aos seus polêmicos pensamentos a cerca do cristianismo, no qual questionava e criticava os fundamentos morais e metafísicos presentes na consciência religiosa da civilização ocidental, sobretudo por considerar que esta religião teria desfavorecido a importância da vida terrena, imanente, em prol da crença na suposta existência de um mundo supra-sensível, ordenadamente perfeito (BITTENCOURT, 2008).
Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e procurar neles elevação moral, sim, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos olhares de amor, quem assim o fizer, terá logo de lhes dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau (NIETZSCHE, 1882)

É com estas inspirações nietzschianas, que Saramago (2009), assim como ocorreu na ocasião do lançamento do Evangelho, afirma em entrevistas que o romance não é um acerto com Deus, visto que as contas com ele não são definitivas, mas sim com os homens que o inventaram. Diz também que Deus, o demônio, o bem, o mal, tudo isso está em nossa cabeça, não no céu ou no inferno, que também inventamos. “Não nos damos conta de que, tendo inventado Deus, imediatamente nos tornamos seus escravos”. Para Saramago, Deus não é mais que um pretexto para que as religiões possam melhor escravizar a consciência humana. Com Caim, ele trata de deitar, literariamente, sobre o tapete do mundo, esta crua realidade.

2. As faces dessacralizadas de Deus pelo personagem Caim

No romance Caim, Saramago constrói uma releitura crítica e irônica do Antigo Testamento da Bíblica, trazendo Caim como personagem principal. A história começa a partir da criação do homem, do pecado original, da expulsão do paraíso e do estabelecimento de uma nova ordem decorrente do entendimento obtido através do fruto proibido. Em todo o texto, Caim é o protagonista e narrador das atrocidades do Deus bíblico, o irmão de Abel não nega seu crime e aceita sua vida errante como uma espécie de castigo. Não aceita, contudo, ser mais criminoso e cruel que deus. Se ele matou seu irmão (por vingança ao desprezo de Deus por seu sacrifício, que preferiu a oferenda de Abel), esse Deus cometeu muito mais crimes que ele: assassinou milhares de inocentes ao despejar fogo sobre Sodoma e Gomorra e chega à crueldade máxima de pedir a Abraão que mate seu próprio filho. A dialética de Caim com Deus é impecável: “Se eu pequei, tu pecaste mais. Se eu matei meu irmão, tu mataste, ou mandaste matar, a muitos mais” (SARAMAGO, 2009, p.79).
Mais do que a história romanceada de Caim, o escritor aborda em seu livro o absurdo de um Deus que para ele aparece na Bíblia mais cruel e caprichoso que o pior dos homens. Claro que ele escolhe para a obra as passagens mais inexplicáveis e obscuras do Antigo Testamento, nas quais aparece a figura do Deus terrível do Sinai, do Deus que pede sangue para ser vingado e obedecido cegamente:
Eis o que diz o senhor, deus de israel, pegue cada um numa espada, regressem ao acampamento e vão de porta em porta, matando cada um de vocês o irmão, o amigo, o vizinho. E foi assim que morreram cerca de três mil homens. O sangue corria entre as tendas como uma inundação que brotasse do interior da própria terra, como se ela própria estivesse a sangrar, os corpos degolados, esventrados, rachados de meio a meio, jaziam por toda a parte, os gritos das mulheres e das crianças eram tais que deviam chegar ao cimo do monte sinai onde o senhor se estaria regozijando com a sua vingança. (SARAMAGO, 2009 p.100-101)

É de modo jocoso e irônico que a narrativa saramaguiana descreve as diversas aparições do Senhor na terra, sempre de cetro em punho “como um cacete”, ou “em fato de trabalho", sendo precedido, mormente “de um trovão ensurdecedor e dos correspondentes relâmpagos pirotécnicos” (SARAMAGO, 2009, p. 148). Apesar de ser o autor da criação, Deus se afasta dela, delegando poderes a subalternos na hierarquia celestial que encobrem suas falhas escorados na alienação e no descaso divinos: “o plano é excelente, há querubins no mundo, que são uma autêntica providência, enquanto o senhor, pelo menos neste experimento, não se preocupou nada com o futuro das suas criaturas” (SARAMAGO, 2009, p. 16). Ademais Deus também não cumpre as promessas feitas e não hesita em pôr seus filhos em xeque quando o que está em jogo são a glória e o poder. Ou seja, a divindade, em Caim, é também uma alegoria da contemporaneidade através da violência, do terrorismo, da manipulação e outros desmandos que ainda acometem a humanidade.
O elemento desencadeador da narrativa, construída a partir do assassinato de Abel e narrado pela Bíblia, que o escritor português costuma chamar de “o catálogo de crueldade e do pior da natureza humana” é o delito (SARAMAGO, 2009, p. 135). O primeiro homicídio é resultado da inveja de Caim por Abel, seu irmão, ao ver que, ao contrário do seu, o sacrifício por este enviado agradara a divindade:
O fumo da carne oferecida por Abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de Caim, cultivados com amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação (SARAMAGO, 2009, p. 33).

O fato de Caim ser preterido por Abel coloca Deus como cúmplice e autor intelectual do primeiro assassinato, porque sendo onisciente, sabia do que estava por acontecer ao desprezar a oferta de Caim, e sendo onipotente, poderia ter o impedido de perpetrar seu crime, relevando assim, que o senhor era injusto e imparcial e que não amava suas criaturas igualmente: “como tu foste livre para deixar que eu matasse a Abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso.” (SARAMAGO, 2009, p. 18-19). Destarte, o narrador afirma que “deus não é de se fiar” e ao mesmo tempo interroga: “que diabo de deus é esse que, para enaltecer Abel, despreza Caim?” (SARAMAGO, 2009, p. 35).
A noção de temporalidade é inovada no texto de Saramago, o qual não obedece a cronologia da narrativa bíblica nem em relação a sua ordem, nem em relação à própria noção quantitativa, e é justamente esta flexibilidade que estrutura sua narrativa: as súbitas mudanças de presente permitem a Caim viajar no tempo, ora para o futuro, ora para o passado. Além da possibilidade que o autor dá ao personagem de participar de eventos que seriam inalcançáveis ao mesmo considerando-se a perspectiva provável de vida apontada pela narrativa bíblica para aquela época, já que este participa de eventos que excederiam em muito dois mil anos.
É Através do insólito e de “súbitas mudanças de presente que o faziam viajar no tempo” (SARAMAGO, 2009, p. 89), que a personagem é conduzida a várias épocas e passagens do Antigo Testamento, testemunhando situações em que o caráter castrador e narcisista de Deus se revela e que faz com que seus questionamentos tornem-se cada vez mais intensos. Entre esses eventos estão a provação de Abraão ao sacrificar seu filho a deus; nos fatos que envolvem a condenação e destruição de Sodoma e Gomorra, episódio em que muitos inocentes, como crianças, foram sacrificados e constantemente referidos ao longo do texto:
No regresso, por casualidade, detiveram-se por um momento no caminho onde abraão tinha falado com o senhor, e aí caim disse, Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e a sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas. (Saramago. 2009, p.97).

Sobre o sacrifico de Isaac, Caim questiona Abraão: “Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar” (SARAMAGO, 2009, p.81) e logo depois é o próprio filho de Abraão, que procurando entender o porquê de seu pai tentar sacrificá-lo, faz duros comentários sobre os atos divinos:
E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é capaz de tudo, do bom, do mau e do pior (...) O costume do senhor é mandar a ruína, ou uma doença, a quem lhe falhou (...) Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto ter eu morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos (SARAMAGO, 2006. p.82).

Entretanto, a atmosfera de seriedade decorrente dessa releitura do Antigo Testamento é subvertida e aliviada pela ironia e o sarcasmo que rompem com a sacralidade do texto bíblico, livrando-o do peso do servilismo que concorre para a dor e o sofrimento do homem. É, assim, pela via do humor que vemos um Caim assustado evitar a punhalada de Abraão em seu filho, porque o anjo encarregado do resgate do menino chega tarde ao local de sacrifício devido a uma desregulagem em suas asas. Por fim, é com curiosidade que a personagem observa as disputas entre Deus e o diabo para unir sua voz à da mulher de Jó ao afirmar que “o mais certo é que satã não seja mais que um instrumento do senhor, o encarregado de levar a cabo os trabalhos sujos que deus não pode assinar com seu nome” (SARAMAGO, 2009, p. 139) ou, um pouco antes, quando o autor afirma que:

O senhor não ouve, o senhor é surdo, por toda a parte se lhe levantam súplicas, são pobre, infelizes, desgraçados, todos a implorar o remédio que o mundo lhes negou, e o senhor vira-lhes as costas, começou por fazer uma aliança com os hebreus e agora fez um pacto com o diabo, para isso não valia e pena haver deus (SARAMAGO, 2009, p. 136).

Na etapa final da viagem, Caim participa e altera significativamente a saga de Noé e a arca. Sua primeira intervenção ocorre no momento de construção da nave, quando, sendo princípios de Arquimedes, Caim aponta erros de cálculo do divino que fariam com que ela não flutuasse: “Com estas dimensões e a carga que irá levar dentro, a arca não poderá flutuar, (...) Os teus cálculos estão errados, um barco deve ser construído junto à água, não num vale rodeado de montanhas” (SARAMAGO, 2009, p. 152). Posteriormente, diante do pasmo de Noé e de sua família ao presenciar a intimidade suposta na conversa entre ele e Deus, Caim é admitido na arca, presenciando e participando ativamente de sua ação.
Dentro de toda a obra, Caim vai desmascarado e desmitificando a imagem de Deus. Esse desmascaramento é feito através de um debate constante com a divindade, tentando de todas as formas apontar seus graves erros, e libertar-se do julgo de se submeter a um senhor desleal, que se arrepende de ter criado o homem e o desgraça de todas as maneiras, só porque esse não o serve e o adora como ele tanto queria .

3. O conflito interminável ente o homem e Deus

Caim matou Abel por não poder matar Deus. Caim é um herói humano condenado por Deus a errar pelo mundo: a sua luta contra a arbitrariedade e a imoralidade do poder de Deus é permanente. “É preciso matar Deus e, deste modo, conquistar definitivamente a emancipação do homem” (SOUZA, 2009). Saramago inspira-se na filosofia anticristã de Nietzsche, que anuncia a “morte de Deus” no livro A Gaia Ciência (1882):
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje! (NIETZSCHE, 1882)

O Anúncio da morte de Deus, por Nietzsche, significa o fim do modo tipicamente metafísico de pensar, na medida em que, para ele, o cristianismo, tanto como religião quanto como doutrina moral, constitui uma versão vulgarizada do platonismo, adaptadas às necessidades e anseios de amplas massas populares. “A morte de Deus é uma expressão simbólica do desaparecimento desse horizonte metafísico, baseado na oposição entre aparência e realidade, verdade e falsidade, bem e mal, estabelecendo a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade” (GIACOIA JR, 2000, p. 24). Assim, a morte de Deus abriria caminho para novas possibilidades humanas. Os homens, não mais procurando vislumbrar uma realidade sobrenatural, poderiam começar a reconhecer o valor deste mundo. Assumir a morte de Deus seria livrar-se dos pesados ídolos do passado e assumir sua liberdade, tornando-os eles mesmos em deuses.
Segundo, Joaquim Francisco de Saraiva Souza (2009), é legítimo encarar que no final do romance Caim há um cruzamento com o momento em que n’O Evangelho segundo Jesus Cristo é ponderada a possibilidade de Jesus perguntar a Deus: “Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens” (SARAMAGO, 1991). Este excerto resume a opinião saramaguiana de Deus. No final do romance Caim, o personagem replica a Deus, em tom de admoestação: “Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face”.
O final do romance de José Saramago é desconcertante (...). Caim mata um a um os escolhidos de Deus, contrariando o projeto divino de iniciar uma segunda humanidade. Depois do dilúvio, da humanidade resta apenas Caim que discute com Deus (...). Matar Deus foi, para Caim, matar os seus escolhidos (...), Mas se matar Deus é dizer não à reprodução, então a consumação do ateísmo seria um suicídio coletivo (...). Com efeito, homem e Deus pertencem-se um ao outro: a morte de um é a morte do outro. Onde há homens há Deus e onde há Deus há homens: (...). Esta é a mensagem pessimista de Caim! (SOUZA, 2009).

Para o teórico, torna-se evidente que o primado do eterno presente - as mudanças súbitas de presentes por parte de Caim - permite a Saramago trazer a história bíblica de Caim até aos nossos tempos modernos, em termos filosóficos, o que não se trata de mera magia do narrador, porque há nesse “modo de temporalização uma filosofia da história subjacente e implícita, de cunho marcadamente pessimista” (SOUZA, 2009, p.6). Para Saramago, a história do homem entendida como discussão entre os homens e Deus é uma única e mesma "catástrofe": quer olhe para trás (passado) ou para a frente (futuro), Caim testemunha a mesma catástrofe, a mesma tempestade, da qual Deus é o principal e, em última análise, o único responsável.
Saramago não só não acredita na salvação, mesmo na sua forma secularizada como realização de uma sociedade fraterna, como também desconfia do sentido político desta viragem teológica. Na sua perspectiva, “desmitologizar a Bíblia significa desteocratizá-la e desteocratizar a Bíblia significa humanizá-la, com o objectivo de apagar todos os vestígios literais da responsabilidade de Deus pela história cruel da humanidade e do seu descuido pelo futuro do homem” (SOUZA, 2009.p.7). Daí que o escritor procure recuperar e reanimar o sentido literal historicizado da Bíblia para acusar e condenar Deus.
Nietzsche argumentava que a ética cristã era uma moral de escravos, de gente fraca e vil que havia, através do cristianismo, “desvirilizado” o espírito senhorial e dominante dos aristocratas: “O cristianismo é uma insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho dos pequenos tornado baixo”. Os séculos de pregação cristã trouxeram enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental, especialmente das suas elites, na medida em que o "doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos" (NIETZSCHE, 1882). É nesse ponto que Saramago reinventa o mito de Caim, e celebra sua liberdade e seu desafio à divindade cristã, não temendo desobedecê-la e nem tampouco encará-la de frente, acusando-a de todos os seus horrendos crimes contra a humanidade. Esse Caim corajoso, desafiador, é uma alegoria à militância do ateísmo contemporânea, inspirado na filosofia de Nietzsche, em busca de construir uma nova concepção do homem, revestido de novos valores, assumindo-se enquanto potência transcendental, e tomando posse de sua emancipação existencial. Por conseguinte, o super-homem de Nietzsche:
O super-homem nietzschiano despreza a religião cristã, com seu Deus morto, cuja ética ele considerou uma espiritualização da antiga casta dos sacerdotes que se juntou à fraqueza, à pobreza e à covardia da gente comum. O Cristianismo é uma teologia de ressentidos, uma fé de enfermos e de desgraçados. Liberto das cangas pesadas e inibidoras da moralidade cristã e burguesa em que foi educado e formado, o super-homem, seguramente, irá forjar "com companheiros que saibam afiar a sua foice" uma nova moralidade. Habitando "a casa da montanha" ou a floresta, incessantemente superando a si mesmo, altivo como a águia e astuto como a serpente (...), inscreverá "valores novos ou tábuas novas". Ele é o devir a ser, ele é o futuro (SCHILLING, 2001, p.35)

O romance de José Saramago termina com um derradeiro e contundente diálogo entre Caim e Deus, no qual o conflito é interminável, se perdendo no decurso da história, onde nenhum cede ao outro a possibilidade de vitória e dominação. Deus procura por Noé e sua família que estavam dentro da arca, e Caim o avisa de que foram mortos por suas próprias mãos, para que os planos celestiais de uma nova humanidade fossem contrariados:
Onde estão Noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos Noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, (...) Então a nova humanidade que eu tinha anunciado, Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma, Houve um grande silêncio, Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito, A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuam a discutir e que a discutir estão ainda (SARAMAGO, 2009, p. 172).

Os dois travam uma luta dialética de acusação e de ressentimentos, cada um com sua maldade, com seu embrutecimento, expressando-se conforme suas liberdades existenciais, mas o certo é que o projeto de Deus em construir uma nova humanidade, obediente aos seus desígnios, estava cancelado, e agora só restava aos homens herdar o legado da linhagem de Caim: O sentimento eterno de cumplicidade com os crimes hediondos da história e desafiadora coragem de enfrentar a entidade sagrada que tanto o subjugou.

Considerações
Saramago desconstrói a idéia e a imagem de Deus como uma expressão de bondade e misericórdia, tão comumente propagandeada pelo cristianismo. Em seu texto, escrito de forma engenhosa, tingindo num mesmo plano humor e irreverência, ele humaniza a divindade, se apropriando do discurso de Caim, personagem que tem sua história recontada, que não aceita o epíteto de criminoso sem antes acusar o seu algoz. Sem antes acusar quem o intentou a cometer seu crime: Deus. É este mesmo Deus, na visão saramaguiana, o motivo de tantos genocídios históricos. Portanto, é assim que o texto de Saramago vai distorcendo a benevolência do cristianismo e todo seu moralismo, criando uma nova face para Deus.
O Caim desafiador de Saramago representa o novo homem a ser edificado. O homem que não se deixa subjugar pelo seu suposto dono e criador. O homem que luta para libertar-se do aprisionamento de um idealismo que o atormenta desde os primórdios da humanidade e emancipar sua existência, calcada nos valores edificados pelo super-homem nietzschiano. Esse homem no passado obedecia irrestritamente ao “farás” e “não farás”, da parte de Deus ou dos códigos doutrinais rigidamente patrocinados e construídos pela religião burocratizada. Mas, para Nietzsche, esses ditos e sentenças estavam com os dias contados. Uma nova ordem de valores estava para ser estabelecida. O homem não mais podia se inclinar aos mandamentos divinos. Mas deveria ele mesmo conduzir os seus próprios desígnios. Somente ele é que poderá fazer as suas escolhas. E, acima de tudo, optar por uma delas, sejam elas boas ou más. Saramago, através do personagem Caim, já fez as suas: desafiar e desmascarar a existência de Deus e a crueldade da intolerância do cristianismo ocidental.

Referencias
BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida. Rio de
Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, [s.d.]

NIETZSCHE, Friedrich. Sämliche Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. 15 Vols. Berlim: Walter de Gruyter, 1967-1978.

___________. O Anticristo. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2001.

___________. Genealogia da Moral – Uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

FERRAZ, Salma. O Quinto evangelista. Brasília: UNB, 1999.

___________ . As faces de Deus na obra de um Ateu. Juiz de Fora: EUFJF, 2003

_____________. Os vislumbres de Deus na obra de um ateu – José Saramago. Revista de Dibulgação Cultural, Blumenau, nº. 79, ano 23, p. 10-20, abr. 2003.

SARAMAGO, José. Caim. Lisboa: Caminho, 2009

_________. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das
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___________. Memorial do convento. Lisboa: Caminho, 2005.

TOLEDO, Roberto Pompeu de. Cristo e o Deus cruel. Revista Veja, São Paulo, ed.
1207, p. 90-96, nov. 1991.